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ACÓRDÃO Nº 298/2019

Processo n.º 1043/17

2.ª Secção

Relator: Conselheiro Pedro Machete

 

 

 

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:

 

 

I. Relatório

1. A., recorrente nos presentes autos em que é recorrido o Ministério Público, foi condenado por sentença da Instância Local Criminal de Guimarães do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, na pena de 500 (quinhentos) dias de multa, à taxa diária de  20,00 (vinte euros), pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, previsto no artigo 105.º, n.ºs 1, 2 e 5, do Regime Geral das Infrações Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de junho (RGIT). Inconformado, recorreu para o Tribunal da Relação de Guimarães que, por acórdão de 22 de junho de 2017, julgou o recurso improcedente e confirmou a decisão proferida na primeira instância.

Notificado deste acórdão, o ora recorrente arguiu a sua nulidade e solicitou o esclarecimento de alguns pontos do mesmo. O Tribunal da Relação de Guimarães, por acórdão de 11 de julho de 2017, indeferiu o requerido.

 

2. É destes dois arestos que vem interposto o presente recurso de constitucionalidade, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei do Tribunal Constitucional LTC).

Admitido o recurso e subidos os autos, o relator convidou o recorrente a completar o requerimento de recurso. Na sequência da resposta, foram as partes notificadas para alegar, sendo o recorrente alertado para a eventualidade de uma das três questões de constitucionalidade por si indicadas nomeadamente, a enunciada sob a alínea a) na resposta ao despacho convite não vir a ser conhecida. Nas alegações que apresentou, o recorrente manifestou a sua expressa concordância quanto a este aspeto, tendo alegado apenas quanto à inconstitucionalidade das restantes interpretações normativas indicadas na resposta ao despacho convite: 

«b) Da interpretação do disposto nos artigos 61.º, n.º 1, alínea d), e 125.º, do Código de Processo Penal, no sentido de que se podem admitir no processo penal como prova, os documentos obtidos por uma inspeção tributária a que se procedeu durante o inquérito, ao abrigo do dever de cooperação imposto nos artigos 9.º, n.º 1, 28.º, n.º 1 e 2, 29.º e 30.º do Decreto-Lei n.º 413/98, de 31 de dezembro, e nos artigos 31.º, n.º 2, 59.º, n.º 4, e 63.º n.º 1 e 3, da LGT, sem o prévio conhecimento ou decisão da autoridade judiciária competente, por violação do disposto nos artºs 1º, 18.º nº 2, 20º nº 4, 32º nº 1 e 4, 34º, nº 1 e 2 e 219º nº 1 da Constituição;

c) Da interpretação que se extraiu do disposto no artº 61º nº 1 b), d), e), f) e h), 124º nº 1, 125º, 126º nº [2] als. a), d) e e) 3, e 4, 174º e 176º, 178º, 179º e 182º, 267º, 268º, 269º e 270º do Código de Processo Penal no sentido de que podem ser usadas como prova em processo criminal fiscal, documentos cedidos por funcionários de uma empresa ou pelos agentes do crime, seus diretores a uma inspeção tributária, ao abrigo do dever de cooperação previsto nesse diploma legal e nos artºs 31º nº 2 e 59.º n.º 4 da LGT, obtidos a pedido dessa inspeção, quer pessoalmente, quer através da recolha desses documentos nas instalações, sem cumprir o ritualismo previsto no Código de Processo Penal para a apreensão de documento e para uma busca, é inconstitucional por violação do princípio do Estado de Direito, do princípio da legalidade, da igualdade, do direito à integridade moral, à reserva da intimidade da vida provada, o princípio das garantias de defesa, o princípio da tutela jurisdicional dos atos instrutórios e de inquérito, inviolabilidade da correspondência e o princípio do processo equitativo (cfr. artºs 2º, 3º, 13º nº 1, 25.º n.º 1, 26º nº 1, 32º, nº 1, 4 e 8 e 34º nº 1 da Constituição da República Portuguesa e 6º nº 1 da CEDH).».

 

3. O recorrente apresentou alegações, tendo formulado as seguintes conclusões (cf. fls. 1910, v.º-1914):

«1ª O princípio nemo tenetur se ipsum accusare, além de abranger o direito ao silêncio propriamente dito, desdobra-se em diversos corolários, designadamente nas situações em que estejam em causa a prestação de informações ou a entrega de documentos autoincriminatórios, no âmbito de um processo penal.

2ª O princípio nemo tenetur está subtraído a todo o juízo de ponderação mesmo face aos interesses ou valores de maior relevo e eminência comunitária. Como o interesse da eficiência da justiça criminal, maxime na perseguição dos crimes mais graves. Valores ou interesses cuja prossecução não pode, em caso algum justificar que o arguido venha a ser coativamente convertido em instrumento ativo da sua própria condenação. - Costa Andrade in RLJ nº 3989, pág. 146.

3ª Nos presentes autos foram realizadas 3 inspeções tributárias durante o inquérito, tantas quantos os inquéritos apensados no presente processo. Tais ações inspetivas foram ordenadas e tinham como intuito confessado o de obter elementos de prova de crime de abuso de confiança fiscal, relativo a retenções na fonte de IRS efetuadas e não entregues no mês de Julho de 2011, de forma a instruir o processo de inquérito nº 46/2012.6 IDBRG (cfr. fls. 85 dos autos) e de obter elementos de prova de crime de abuso de confiança fiscal, relativo a retenções na fonte de IRS efetuadas e não entregues dos meses de Agosto a Dezembro de 2011) e IVA dos meses de Setembro e Outubro de 2011 e Janeiro e Fevereiro de 2012, de forma a instruir o processo de inquérito nº 288/2012.4IDBRG(cfr. fls. 552).

4ª No âmbito do inquérito criminal, tal como em todas as fases do processo criminal, todo o arguido tem direito ao silêncio e de não contribuir para a sua condenação, ao contrário do que acontece no procedimento de inspeção tributária, pelo que, realizar três inspeções tributárias no decurso do inquérito criminal é subverter as mais elementares regras do processo e obrigar o arguido, sob coação, a contribuir para a sua condenação.

5ª Nos termos do art.º 9.º, n.º 1 do DL 413/98 de 31 de Dezembro, o sujeito passivo alvo de inspeção tributária está sujeito ao dever de cooperação, cominando a lei, a recusa de colaboração e a oposição à ação de inspeção tributária, com a eventual responsabilidade contraordenacional e criminal do infrator (cfr. o artº 32º nº 1 do RCPIT), tendo ainda os inspetores tributários livre acesso às instalações e dependências da entidade inspecionada pelo período de tempo necessário ao exercício das suas funções.

6ª Para além disso, os inspetores têm ainda direito ao exame, requisição, e reprodução de documentos em poder dos sujeitos passivos ou outros obrigados tributários, para consulta, apoio ou junção aos relatórios, processos ou autos (cfr. o art. 28.º, n.os 1 e 2 do supra citado diploma).

7ª O facto de se ter lançado mão do procedimento de inspeção tributária apenas se justifica de uma forma: pretendia-se ultrapassar o entrave que constituía para a Administração Tributária a eventual invocação do direito ao silêncio e o direito de não colaborar com a investigação, por forma a que a investigação decorresse de forma mais rápida e que o arguido não tivesse forma de se opor às diligências que se pretendiam levar a efeito.

8ª Foi, pois, com todo o à vontade que os inspetores tributários circularam nas instalações do arguido, obtendo da parte dos funcionários, representantes legais toda a cooperação que lhes é exigida pela Lei Tributária, mas que, em nenhum momento se coadunam com os direitos conferidos aos arguidos, com o princípio da proporcionalidade e com os princípios inerentes aos meios de obtenção de prova e meios de prova em processo penal.

9ª Escancarando-se as portas do processo penal à prova obtida no âmbito do Procedimento de Inspeção Tributária, está-se a violar os princípios de proibição de autoinculpação do arguido, o seu direito ao silêncio e o direito de ver escrutinado pelo Juiz de Instrução o acesso a documentos e outros elementos de prova.

10ª O contribuinte/arguido vê-se envolvido numa camisa de sete varas, ou seja: ou coopera e vê-se na contingência de contribuir para a sua incriminação no processo penal, ou não coopera e, do mesmo modo, comete um crime.

11ª Nunca foi invocada qualquer necessidade e/ou urgência na recolha de prova que suportasse a existência de qualquer providência cautelar para salvaguardar prova do crime.

12ª As inspeções tributárias levadas a cabo confessadamente, destinaram-se, apenas e tão-só a recolher prova para o processo crime e no seu decurso.

13ª A cooperação do arguido no âmbito do processo crime deve ser livre e esclarecida, na medida em que este pode e deve poder decidir quando e se presta declarações no âmbito do processo.

14ª Os direitos do arguido a não prestar declarações sobre os factos que lhe são imputados e a não fornecer provas que o possam incriminar são uma dupla consequência do princípio da presunção da inocência, ou seja, é exatamente porque ele beneficia desta presunção (que determina a inversão do ónus da prova), devendo mesmo ser absolvido em caso de dúvida acerca da autoria da infração penal (é o conhecido princípio in dubio pro reo), que o arguido não pode assumir a dupla veste de investigador e investigado.

15ª Realizando-se uma inspeção tributária no decurso do processo penal o arguido é fraudulentamente induzido ou coagido a contribuir para a sua condenação, carreando ou oferecendo meios de prova contra a sua defesa.

16ª O direito à não autoinculpação do contribuinte/arguido não deve ser postergado ou comprimido por qualquer outro dever do contribuinte/arguido, designadamente o de cooperação com a Administração Tributária. Fazê-lo seria defender que o arguido deve contribuir para a sua condenação e, no fundo, inverter o ónus da prova no âmbito do processo penal, manietando o arguido, tornando-o um objeto, conforme os interesses da investigação, violando frontalmente o princípio da dignidade da pessoa humana previsto no artº 1º da Constituição.

17ª O direito a um processo equitativo, protegido pelo artº 6º nº1 do CEDH, inclui, quer para o arguido, quer para o suspeito, sejam eles pessoas singulares ou pessoas coletivas, um direito ao silêncio e um direito a não colaborar com as autoridades de investigação ou de acusação, fornecendo-lhes provas das infrações por eles alegadamente cometidas.

18ª O que aconteceu nos presentes autos com as inspeções tributárias determinadas arbitrariamente pela Autoridade Tributária nas costas do Ministério Público -, designadamente com a apreensão de documentos é manifestamente ilegal, desde logo, porque nunca foram autorizadas, ordenadas ou validadas por quem quer que fosse, ao arrepio do disposto no artº 178º nº 3 do Código de Processo Penal, do princípio da presunção de inocência e da intervenção obrigatória da autoridade judiciária no deferimento ou validação desses meios de prova (arts. 32º, nº 2 e nº 4 da Constituição da Republica Portuguesa).

19ª Os artºs 1º, 20º nº 4 e 32º nº 1 e 4 da Constituição e o direito a um processo equitativo demanda que seja um juiz a decidir a restrição dos direitos liberdades e garantias, a ordenar ou validar os meios de prova que os restrinjam, designadamente das garantias de defesa do arguido que incluem o direito ao silêncio do arguido e a não se autoincriminar.

20ª Quer isto dizer que os documentos constantes dos autos principais decorrentes das inspeções tributárias e os documentos constantes dos anexos, constituídos por documentos fiscalmente relevantes (faturas, meios de pagamento, folhas de férias, etc.) é ilegal e inconstitucional.

21ª A interpretação que o acórdão recorrido fez do disposto no artº 126º nº 2 al. a) do Código de Processo Penal, no sentido de ser permitido que a Administração Tributária, sem prévio despacho da autoridade judiciária competente, desencadeie uma inspeção tributária com a finalidade de recolher meios de prova para o processo penal no seu decurso, é inconstitucional por violação dos artºs 20º nº4, 32º nº1, 2 e 4 da Constituição.

22ª Forçoso é, também, concluir que a interpretação do disposto nos artigos 61.º, n.º 1, alínea d), e 125.º, do Código de Processo Penal, no sentido de que se podem admitir no processo penal como prova, os documentos obtidos por uma inspeção tributária a que se procedeu durante o inquérito criminal, ao abrigo do dever de cooperação imposto nos artigos 9.º, n.º 1, 28.º, n.º 1 e 2, 29.º e 30.º do Decreto-Lei n.º 413/98, de 31 de dezembro, e nos artigos 31.º, n.º 2, 59º, n.º 4 e 63º nº1 e 3, da LGT, sem o prévio conhecimento ou decisão da autoridade judiciária competente, é inconstitucional por violação do disposto nos artºs 1º, 18º nº2, 20ºnº4, 32º nº1 e 4, 34º nº1 e 2 e 219º nº1 da Constituição.

23ª Ou talvez dito de forma mais completa, a interpretação que se extraia do disposto no artº 61º nº1 b), d), e), f) e h), 124º nº1, 125º, 126º nº1 als, a), d) e e) 3, e 4, 174º e 176º, 178º, 179º e 182º, 267º, 268º, 269º e 270º do Código de Processo Penal no sentido de que podem ser usadas como prova em processo criminal fiscal, documentos cedidos por funcionários de uma empresa ou pelos agentes do crime, seus diretores a uma inspeção tributária, ao abrigo do dever de cooperação previsto nesse diploma legal e nos artºs 31º nº2 e 59º nº4 da LGT, obtidos a pedido dessa inspeção, quer pessoalmente, quer através de recolha desses documentos nas instalações, sem cumprir o ritualismo previsto no Código de Processo Penal para a apreensão de documentos e para uma busca, é inconstitucional por violação do princípio do Estado de Direito, do princípio da legalidade, da igualdade, do direito à integridade moral, à reserva da intimidade da vida privada, o princípio das garantias de defesa, o princípio da tutela jurisdicional dos atos instrutórios e de inquérito, inviolabilidade da correspondência e o princípio do processo equitativo (cfr. artºs 2º, 3º, 13º nº1, 25º nº1, 26º nº1, 32º nº1, 4 e 8 e 34º nº1 da Constituição da República Portuguesa e 6º nº1 da CEDH).

24ª De facto, os órgãos de polícia criminal não têm um poder de investigação autónoma, cabendo estes apenas ao Ministério Público e ao Juiz de Instrução quanto à decisão de aplicação de medidas de coação.

25ª A realização das inspeções tributárias não teve qualquer intervenção do Ministério Público (quer no seu deferimento ou validação) enquanto defensor da legalidade e a quem incumbe o exercício da ação penal, sendo que o poder de promoção processual do Ministério Público não se esgota na dedução de acusação, pelo que resulta violado o artº 219º nº1 da Constituição.

26ª A Administração Pública, incluindo, portanto a Administração Tributária, deve, nas suas atuações face aos administrados, respeitar os direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, o que não aconteceu no presente caso. Daí que também resulte violado o artº 266º nº1 da Constituição.

27ª A restrição do direito de o arguido a não se autoinculpar em face do direito do Estado de arrecadar impostos ainda que se entenda que é proporcional, nunca por nunca essa restrição pode ser feita no decurso do processo penal e apenas e só com o intuito de recolher prova para o incriminar.

28ª Na verdade, o Estado arrecada impostos ou através do seu pagamento voluntário ou da execução fiscal através da penhora de bens e não através de qualquer processo criminal, nos quais, aliás, a Administração Tributária ou o Ministério Público não deduzem sequer pedido de indemnização civil.

29ª Se a realização de inspeção tributária em momento anterior à abertura do processo criminal tem respaldo legal, devendo o inspetor tributário comunicar os factos ilícitos ao Ministério Público, já não tem qualquer respaldo legal fazer-se uma ação inspetiva no decurso de um processo penal, por forma a recolher prova que, de outro modo, no âmbito do processo penal, o arguido teria direito a recusar-se a ceder ou que apenas seria obrigado a ceder mediante decisão judicial que ordenasse buscas ou apreensão de documentos.

30ª Não é, assim, de encarar sequer a possibilidade de se ter como proporcional a restrição do direito do arguido de não se autoinculpar nestas circunstâncias, uma vez que o entendimento contrário transformaria o arguido em principal testemunha de acusação contra si próprio e num joguete nas mãos do inspetor tributário.

31ª Tendo em conta o exposto devem ser julgadas inconstitucionais as interpretações normativas supra expostas, devendo os autos baixar ao Tribunal da Relação para proferir decisão que se conforme com tal juízo de inconstitucionalidade.

[]»

 

4. Em contra-alegações, concluiu o Ministério Público o seguinte:

«VI - Conclusões

36.    []

37.    Este recurso foi interposto pelo arguido com fundamento no () artº 70º nº 1 al. b) da LTC.

38.    Face ao despacho de fls. 1850, do Exm.º Sr. Conselheiro relator, veio o recorrente, nas suas alegações, a fls. 1854 v.º, redefinir o objeto do recurso, esclarecendo que, [c]oncordando-se com o que aí se diz, as alegações seguintes versarão somente as restantes questões ou seja, as comunicadas nas alíneas b) e c) de fls. 1845 e v.º.

39.    Os parâmetros constitucionais cuja violação é invocada são, quanto à primeira questão - a da alínea b) -, as normas consubstanciadas nos artºs 1º, 18º nº 2, 20º nº 4, 32º nº 1 e 4, 34º nº 1 e 2 e 219º nº 1 da Constituição; e quanto à segunda a da alínea c) oprincípio do Estado de Direito, [o] princípio da legalidade, da igualdade, [o] direito à integridade moral, à reserva da intimidade da vida privada, o princípio da garantias de defesa, o princípio da tutela jurisdicional dos atos instrutórios e de inquérito, inviolabilidade da correspondência e o princípio equitativo (cfr. artºs 2º, 3º, 13º nº 1, 25º nº 1, 26º nº 1, 32º nº 1, 4 e 8 e 34º nº 1 da Constituição da República Portuguesa e 6º nº 1 da CEDH).

40.    Defende o recorrente, nas suas doutas alegações que, embora não desconhecendo o teor do Acórdão n.º 340/13, do Tribunal Constitucional, entende que o mesmo é inaplicável à boa solução do presente litígio.

41.    Ora, conforme procurámos demonstrar, não há qualquer diferença substancial entre o objeto normativo do presente recurso e aquele que constituiu o tema do douto Acórdão n.º 340/13.

42.    Efetivamente, após analisarmos as questões carreadas para os autos pelo arguido, concluímos que, rigorosamente, apenas se encontra suscitada uma questão de constitucionalidade - a formulada pelo recorrente na alínea b) -, não devendo o Tribunal conhecer da questão formulada na alínea c) a versão inoperativa e não normativa daquela e, para além disso, que a questão a conhecer se identifica absolutamente (com exceção da irrelevante menção ao artigo 63.º, n.ºs 1 e 3 da LGT) com a discutida e decidida no douto Acórdão n.º 340/13.

43.    Tendo concluído que, distintamente do defendido pelo recorrente, não existem quaisquer diferenças substanciais entre a decisão aqui impugnada e aquela que mereceu a apreciação do Tribunal Constitucional, no seu douto Acórdão n.º 340/13, passámos a recordar os pontos principais da argumentação neste aresto expendida.

44.    Da tese defendida, pelo Tribunal, no mencionado Acórdão n.º 340/13, sublinhamos a síntese final, a saber, que:

Assim, numa ponderação entre o princípio nemo tenetur se ipsum accusare e a restrição que ao mesmo é imposta no caso concreto e os valores constitucionais que se pretendem salvaguardar com essa restrição, é de entender que a mesma não se revela desproporcionada.

Pelo exposto, há que concluir que a interpretação normativa em questão não viola qualquer norma ou princípio constitucional, designadamente o direito à não autoincriminação, incluído nas garantias de defesa do arguido em processo penal, asseguradas no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, nem qualquer dos restantes direitos constitucionais invocados pelo Recorrente

45.    E realçamos, ainda, necessariamente, o teor do aí decidido, ou seja, a deliberação de:

() não julgar inconstitucional a norma resultante da interpretação do disposto nos artigos 61.º, n.º 1, d), e 125.º, do Código de Processo Penal, com o sentido de que os documentos obtidos por uma inspeção tributária, ao abrigo do dever de cooperação imposto nos artigos 9.º, n.º 1, 28.º, n.º 1 e 2, 29.º e 30.º do Decreto-Lei n.º 413/98, de 31 de dezembro, e nos artigos 31.º, n.º 2, e 59.º, n.º 4, da LGT, podem posteriormente vir a ser usados como prova em processo criminal pela prática do crime de fraude fiscal movido contra o contribuinte.

46.    Resulta, consequentemente, do exposto, o entendimento de que a norma resultante da interpretação do disposto nos artigos 61.º, n.º 1, d), e 125.º, do Código de Processo Penal, com o sentido de que os documentos obtidos por uma inspeção tributária, ao abrigo do dever de cooperação imposto nos artigos 9.º, n.º 1, 28.º, n.º 1 e 2, 29.º e 30.º do Decreto-Lei n.º 413/98, de 31 de dezembro, e nos artigos 31.º, n.º 2, e 59.º, n.º 4, da LGT, podem posteriormente vir a ser usados como prova em processo criminal pela prática do crime de fraude fiscal movido contra o contribuinte, não se revela violadora de quaisquer princípios ou regras com assento constitucional.

47.    Por força do acabado de explanar, e reiterando o já afirmado, entendemos que não deverá o Tribunal Constitucional, em primeira linha, conhecer do objeto do recurso no que respeita à questão formulada na alínea c), não devendo, para além disso, julgar inconstitucional a norma resultante da interpretação do disposto nos artigos 61.º, n.º 1, d), e 125.º, do Código de Processo Penal, com o sentido de que os documentos obtidos por uma inspeção tributária, ao abrigo do dever de cooperação imposto nos artigos 9.º, n.º 1, 28.º, n.º 1 e 2, 29.º e 30.º do Decreto-Lei n.º 413/98, de 31 de dezembro, e nos artigos 31.º, n.º 2, e 59.º, n.º 4, da LGT, podem posteriormente vir a ser usados como prova em processo criminal pela prática do crime de fraude fiscal movido contra o contribuinte, negando, assim, provimento ao presente recurso.»

 

5. Notificado do teor das contra-alegações para, querendo, se pronunciar quanto à eventualidade de a questão de constitucionalidade enunciada na alínea c) não vir a ser conhecida, pelas razões invocadas pelo Ministério Público (cfr. a conclusão 42. das respetivas alegações), o ora recorrente veio dizer o seguinte:

«As duas razões aventadas pelo Ministério Público para o não conhecimento do recurso nessa parte excluem-se.

Ou a questão é inoperativa e não normativa ou se identifica com a decidida no acórdão 340/13, porque se a questão era inoperativa e não normativa e era idêntica à já decidida, tem que se concluir que este Tribunal não devia ter decidido o recurso que deu origem a esse acórdão, mas sim rejeitá-lo. []

[Mas] a questão de a inspeção tributária ser desencadeada antes do início do processo criminal ou durante o processo criminal e por causa dele não é de somenos importância, porque se o fosse o dito acórdão 340/13 não faria uma clara distinção entre as duas situações, quando diz:

O critério sob fiscalização neste recurso não respeita a um dever de entrega de documentos autoincriminatórios, no decurso de um processo penal, mas sim à utilização como prova nesse processo de documentos que foram anteriormente facultados pelo arguido à administração estadual, em cumprimento de um dever de colaboração; e acrescenta

Finalmente, a utilização como prova em processo penal de documentos obtidos na atividade de fiscalização tributária, não deixará de ser proibida, nos termos do artigo 126.º, n.º 2, a), do Código de Processo Penal, quando se revele que a entidade fiscalizadora tenha desencadeado ou prolongado deliberadamente a fase inspetiva, com a finalidade de recolher meios de prova para o processo penal a instaurar, abusando do dever de colaboração do contribuinte.

A questão é por isso bem diferente. []

Para além disso, o que salva, na tese que vingou no acórdão 340/13, a constitucionalidade da interpretação normativa aí colocada em crise é uma questão de proporcionalidade. []

Ou seja, o que aí se diz é que apesar da compressão do direito à não autoinculpação, o contribuinte pode sempre opor-se às diligências da inspeção, com duas consequências ou direitos:

a)       a diligência só poderá ser realizada mediante autorização concedida pelo tribunal da comarca competente com base em pedido fundamentado da administração tributária» (n.º 5, do artigo 63.º, da LGT, na redação originária, correspondente ao atual n.º 6, por força de renumeração operada pela Lei n.º 37/2010, de 2 de setembro);

b)      assistirá também ao contribuinte sujeito a fiscalização, o direito a requerer a sua constituição como arguido, sempre que estiverem a ser efetuadas diligências destinadas a comprovar a suspeita da prática de um crime, nos termos do artigo 59.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, o que permitirá que este passe a dispor dos direitos inerentes ao respetivo estatuto, designadamente o direito à não autoincriminação.

   Pensa-se que tanto bastará para se concluir que a questão colocada é normativa ou não o sendo ou estando colocada de uma forma atabalhoada, o Tribunal pode da mesma conhecer e que não é idêntica à colocada no acórdão 340/13, pois que, se assim fosse, não se faria qualquer alusão quanto às duas situações nesse mesmo acórdão».

 

Cumpre apreciar e decidir

 

II. Fundamentação

A) Delimitação do objeto do recurso

6. O objeto do recurso de constitucionalidade é definido, em primeiro lugar, pelos termos do requerimento de interposição de recurso. Com efeito, tem sido entendimento constante do Tribunal Constitucional que, ao definir, em tal requerimento, a norma ou interpretação normativa cuja constitucionalidade pretende sindicar, o recorrente delimita, em termos irremediáveis e definitivos, o objeto do recurso, não lhe sendo consentida qualquer modificação ulterior, com exceção duma redução do pedido, nomeadamente, no âmbito da alegação que produza.

In casu, entendeu o recorrente, quanto à questão enunciada sob a alínea a) na resposta ao despacho convite nesse aspeto concordando com o relator que a mesma não reunia as condições para ser conhecida. Por isso, alegou apenas quanto à matéria das questões enunciadas nas alíneas b) e c) de tal resposta.

 

7. Segundo o Ministério Público, não há qualquer diferença substancial entre o objeto do presente recurso e aquele que constituiu o thema decidendum do Acórdão n.º 340/2013 do Tribunal Constitucional (acessível, assim como a restante jurisprudência constitucional citada, em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/), sendo, em todo o caso, claro que o conteúdo da questão de constitucionalidade suscitada pelo recorrente nos presentes autos sob a alínea c) na resposta ao despacho convite constituiria «a versão inoperativa e não normativa» da enunciada sob a alínea b) na mesma peça processual, pelo que aquela não deveria ser conhecida.

O problema de saber se o objeto material do presente recurso pode, ou não, reconduzir-se à questão de constitucionalidade decidida pelo Acórdão n.º 340/2013 exige a sua prévia clarificação. 

No que se refere à falta de normatividade da questão formulada na mencionada alínea c), a mesma não é evidente.

Há decerto um maior grau de concretização da situação considerada, mas nem por isso deixa de estar em causa uma hipótese suscetível de verificação em diversos casos típicos: a utilização como prova em processo penal tributário movido contra determinado contribuinte de documentos obtidos no âmbito de inspeção tributária realizada ao mesmo contribuinte em momento em que já decorria o inquérito correspondente àquele processo.

Daqui resulta também que a situação de partida nos presentes autos é diferente da que foi analisada no Acórdão n.º 340/2013, porquanto, nesse caso, a inspeção tributária se iniciou antes da instauração do inquérito criminal e os documentos em causa foram obtidos antes de o contribuinte inspecionado ter sido constituído arguido no processo penal.  

O próprio recorrente associa aquelas duas questões, ao indicar a da alínea c) da resposta ao despacho convite e que é reproduzida na conclusão 23.ª das suas alegações  como uma formulação mais completa da questão enunciada na alínea b) da mesma peça a qual, por sua vez, é reproduzida na conclusão 22.ª das mesmas alegações. Na verdade, pode ler-se logo no início da conclusão 23.ª das alegações do recorrente: «[o]u talvez dito de uma forma mais completa», seguindo-se o enunciado da questão indicada sob a alínea c) na resposta ao despacho convite.

Daí a referência a um maior número de preceitos a partir dos quais é extraída a norma sindicada nessa mesma alínea c) contando-se, entre eles, os dois que são referidos a propósito da questão da alínea b), designadamente os artigos 61.º, n.º 1, alínea d), e 125.º, ambos do Código de Processo Penal (CPP) e a diversas circunstâncias relativas ao modo como os documentos foram obtidos pela inspeção tributária ao abrigo do dever de cooperação: entrega de documentos a pedido dos inspetores ou por eles recolhidos nas instalações do recorrente, «sem cumprir o ritualismo previsto no CPP para a apreensão de documentos e para uma busca» (cf. a conclusão 23.ª). Este último segmento torna claro que, tal como é expressamente referido na conclusão 22.ª, está em causa uma inspeção tributária realizada na pendência do processo criminal movido contra a entidade inspecionada. De resto, conforme resulta do teor da conclusão 29.ª das alegações do recorrente, este não pretende questionar a utilização de documentos obtidos por uma inspeção tributária realizada «em momento anterior à abertura do processo criminal». 

Assim sendo, a questão de constitucionalidade enunciada pelo recorrente sob a alínea c) na sua resposta ao despacho convite acaba por se reconduzir ao critério normativo constante da alínea b) da mesma resposta.

Com efeito, muitos preceitos do CPP indicados como fonte formal da norma enunciada enquanto objeto da questão de constitucionalidade a que se reporta a alínea c) da resposta ao despacho convite e a conclusão 23.ª das alegações do recorrente são estranhos à mesma questão e nem sequer foram objeto de interpretação e aplicação pelo tribunal a quo, nem expressa nem implicitamente.

A decisão recorrida, na verdade, a propósito da violação da prerrogativa da não autoincriminação invocada pelo recorrente na motivação do recurso então interposto cf. as respetivas conclusões 29.ª a 44.ª, correspondendo esta última, exceção feita à menção da «finalidade», à conclusão 21.ª das alegações de recurso produzidas no âmbito do recurso de constitucionalidade apenas refere expressamente o artigo 126.º, n.º 2, alínea a), do CPP, mas em conexão com o direito ao silêncio e o direito à não autoinculpação (v. fls. 1738, v.º, e 1744, v.º):

«[O] recorrente invoca a realização de três inspeções tributárias das quais resultou a compilação da extensa documentação de natureza contabilística que se encontra junta aos autos, designadamente nos anexos, maioritariamente constituída por faturas e outros documentos fiscalmente relevantes que não podem ser valorados nos termos do disposto no art. 126.º, n.º 2, alínea a), do CPP, por terem sido violados direitos constitucionalmente consagrados como o direito ao silêncio e o direito à não autoinculpação (pontos 29.º a 44.º das conclusões).

A questão suscitada pela recorrente encontra-se suficientemente debatida na sentença recorrida, com valiosos argumentos, com os quais estamos inteiramente de acordo.

[]

Pode, pois, assentar-se numa conceção mais afinada que aponta para a ideia de que não é abrangido pela proteção do princípio nemo tenetur o meio de prova obtido independentemente da vontade de parte do arguido e/ou da sua elaboração moral, mesmo que advinda de determinada diligência de prova ou de prestações pessoais exigidas sob ameaça de sanção.

Assim sendo, os elementos probatórios a que a recorrente alude foram obtidos independentemente da vontade dos aqui arguidos, não tendo sido por eles elaborados para o efeito, e, como tal, não colhe a argumentação aduzida em redor da prerrogativa à não autoincriminação, na aceção entre nós aceite e que é conforme à Constituição, na interpretação que dela tem tido o próprio Tribunal Constitucional.»

As referências ao direito ao silêncio e ao direito à não autoincriminação remetem para o disposto nos artigos 61.º, n.º 1, alínea d), do CPP (disposição que prevê o direito do arguido a não responder a perguntas feitas sobre os factos que lhe são imputados) e no artigo 125.º do mesmo diploma (disposição sobre a legalidade da prova: «[s]ão admissíveis as provas que não forem proibidas por lei»), visto que está em causa a admissão de prova resultante de certos documentos, tendo a primeira instância considerado que a mesma não é proibida por aplicação do princípio nemo tenetur se ipsum accusare.

A interpretação conjugada daqueles dois preceitos, a que acresce o artigo 126.º, n.º 2, alínea a), do CPP, encontra-se, deste modo, subjacente às duas questões de constitucionalidade enunciadas sob as alíneas b) e c) da resposta ao despacho convite e nas conclusões 22.ª e 23.ª das alegações do recorrente.

Por outro lado, não estão em causa no presente recurso os concretos modos como a Administração fiscal acedeu aos documentos usados como prova em processo penal tributário, sendo suficiente a menção genérica e remissiva de que os mesmos foram obtidos ao abrigo do dever de cooperação previsto no artigo 9.º, n.º 1, do Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária e Aduaneira, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 413/98, de 31 de dezembro (RCPITA), e no artigo 59.º, n.º 4, da Lei Geral Tributária, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 398/98, de 12 de dezembro (LGT). Acresce ser evidente que, estando em causa documentos obtidos ao abrigo do referido dever de cooperação no quadro de inspeções tributárias, os mesmos documentos não chegaram à Administração fiscal com recurso aos meios de obtenção de prova regulados no CPP, designadamente a apreensão de documentos ou as buscas.

Para efeitos de delimitação do objeto do recurso, importa fazer ainda duas observações.

Em primeiro lugar, e pesem embora os processos de intenção e as acusações de manipulação e instrumentalização a que se reportam as conclusões 3.ª, 7.ª, 12.ª, 18.ª, 21.ª, 27.ª e 29.ª das alegações do recorrente, as questões de constitucionalidade, tal como este as enuncia, não referem este aspeto. Significa isto que, na análise a realizar, este Tribunal não tem de considerar uma motivação da parte da Administração que não seja aquela que decorre do puro e simples exercício das respetivas competências. Em termos jurídico-práticos, a questão redundará, assim, em determinar as consequências a retirar da pendência de um processo penal tributário quanto ao resultado do exercício das competências inerentes a uma inspeção tributária. 

Em segundo lugar, importa recordar e sublinhar, conforme é expressamente referido no acórdão recorrido, assim como pelo recorrente na conclusão 20.ª das suas alegações, que os documentos em causa, isto é, aqueles que foram obtidos pela Administração por via da inspeção tributária e posteriormente valorados pelo tribunal num processo penal respeitante a um crime fiscal o abuso de confiança fiscal foram apenas documentos fiscalmente relevantes (cf. o artigo 113.º, n.º 4, do RGIT: estão em causa «os livros, demais documentos e respetivas versões eletrónicas, indispensáveis ao apuramento e fiscalização da situação tributária do contribuinte»). Trata-se de elementos que, estando na posse do contribuinte e cuja existência e obrigatoriedade de conservação está, na maior parte dos casos, legalmente prevista , são solicitados pela Administração tributária no âmbito de um procedimento inspetivo. 

 

8. Pelo exposto, o objeto do presente recurso é a interpretação normativa dos artigos 61.º, n.º 1, alínea d), 125.º e 126.º, n.º 2, alínea a), todos do Código de Processo Penal, segundo a qual os documentos fiscalmente relevantes obtidos ao abrigo do dever de cooperação previsto no artigo 9.º, n.º 1, do Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária e Aduaneira e no artigo 59.º, n.º 4, da Lei Geral Tributária por uma inspeção tributária realizada a um contribuinte, durante a fase de inquérito de um processo criminal pela prática de crime fiscal movido contra o contribuinte inspecionado e sem o prévio conhecimento ou decisão da autoridade judiciária competente, podem ser utilizados como prova no mesmo processo.

 

B) Do mérito

9. Assim delimitado o objeto do recurso, importa apreciar se a interpretação normativa questionada viola algum parâmetro constitucional.

Saliente-se que, embora o recorrente sustente que tal interpretação é violadora de diversas normas constitucionais, nas alegações de recurso, em especial nas conclusões 1.ª, 2.ª, 4.ª, 9.ª, 15.ª, 16.ª, 27.ª, e 30.ª, centra a sua argumentação na violação dos direitos do arguido ao silêncio e à não autoincriminação com diversas alusões ao Acórdão n.º 340/2013 , tendo sido também com referência ao princípio nemo tenetur se ipsum accusare que a questão de constitucionalidade foi enquadrada quer na decisão ora recorrida, quer na sentença de primeira instância. Sem prejuízo da possibilidade de apreciar a norma em análise à luz de outros parâmetros constitucionais, justifica-se começar pelo indicado.

Problemas que importa afrontar independentemente de saber se a proteção proporcionada pelo parâmetro enunciado vale na mesma medida para os entes coletivos.

 

10. O princípio em causa implica o reconhecimento do direito ao silêncio e do direito do arguido à não autoincriminação enquanto elementos de um processo penal de estrutura acusatória.

O primeiro daqueles direitos traduz-se na faculdade reconhecida ao arguido de não se pronunciar sobre os factos que lhe são imputados, diferentemente do que sucedia nos processos regidos pelo princípio do inquisitório em que as declarações obrigatórias do arguido, maxime a confissão forçada, tendem a convertê-lo em instrumento da sua própria condenação. O direito ao silêncio tem vindo a ser reconhecido pela legislação processual penal da maioria dos ordenamentos jurídicos dos Estados de direito modernos, encontrando também consagração expressa em instrumentos jurídicos internacionais (cf. o artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e artigo 14.º do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos).

Já o segundo, entendido como direito a não contribuir para a própria incriminação, impede a transformação do arguido em meio de prova por via de uma colaboração involuntária obtida com recurso a meios coercivos ou enganosos. Existe uma ligação íntima entre os dois direitos, desde logo porque, não sendo reconhecido ao arguido o direito a manter-se em silêncio, este seria obrigado a pronunciar-se e a revelar informações que poderiam contribuir para a sua condenação. 

Daí a correlação do nemo tenetur com a afirmação do arguido enquanto sujeito processual e, em particular, com a sua liberdade de declaração, uma vez que é nesta última que se espelha o estatuto do arguido como autêntico sujeito processual, decidindo, por força da sua liberdade e responsabilidade, sobre se e como quer pronunciar-se sobre os factos que lhe são imputados (cf. o Acórdão n.º 304/2004). De resto, a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) tem reconhecido que o direito à não autoincriminação se relaciona, em primeira linha, com o respeito pela vontade do arguido em «permanecer em silêncio», em não prestar declarações (cf., por exemplo, os Acórdãos de 17 de dezembro de 1996, Saunders c. Reino Unido, Queixa n.º 19187/91, § 69; e de 21 de dezembro de 2000, Heaney and McGuinness c. Irlanda, Queixa n.º 34720/97, § 40).

Com efeito, o núcleo essencial do nemo tenetur respeita a uma dimensão negativa da liberdade de declaração, com preponderante relevo no estatuto processual penal do arguido.

Tal liberdade, na sua dimensão positiva, implica que «tenha de se garantir ao arguido a oportunidade efetiva de se pronunciar contra os factos que lhe são imputados, em ordem a infirmar as suspeitas ou acusações que lhe são dirigidas»; já na mencionada dimensão negativa, a liberdade de declaração protege o arguido contra o exercício de poderes coercivos tendentes a obter a sua colaboração na autoincriminação, nomeadamente mediante a utilização de meios enganosos ou a coação (cf. Manuel da Costa Andrade, Sobre as proibições de prova em processo penal, Coimbra Editora, Coimbra, 1992, p. 120 e ss.). «[O] arguido não pode ser fraudulentamente induzido ou coagido a contribuir para a sua condenação, a carrear ou oferecer meios de prova contra a sua defesa»; pelo contrário, é necessário garantir que «qualquer contributo do arguido, que resulte em desfavor da sua posição, seja uma afirmação esclarecida e livre de autorresponsabilidade» (v. idem, ibidem, p. 121).

O princípio do nemo tenetur visa, pois, assegurar a autodeterminação do arguido na condução da sua defesa no processo e, nessa medida, a garantia da sua posição enquanto sujeito processual. O respetivo conteúdo material é depois assegurado mediante a imposição de deveres de esclarecimento ou de advertência e pela nulidade das provas proibidas em virtude de terem sido obtidas mediante a colaboração involuntária do arguido em consequência do uso ilegítimo de meios coercivos ou de meios enganosos.

É de acordo com esta teleologia que o âmbito de proteção daquele princípio deve ser determinado, seja quanto aos modos de colaboração forçada e seus limites, seja quanto ao momento a partir do qual aquela garantia se torna operante. 

Com efeito, embora o direito ao silêncio do arguido num processo criminal integre o núcleo de tal proteção porque é imediatamente o estatuto de sujeito processual que está em causa , a sua razão de ser leva a estendê-la para além das declarações sobre os factos imputados ao arguido e à sua culpabilidade, a formas de colaboração ou intervenção deste mais instrumentais relativamente à produção de prova incriminatória, como é o caso da prestação de informações, da entrega de documentos ou de outras formas de colaboração que possam contribuir para a sua condenação (cf. os Acórdãos n.ºs 461/2011 e 340/2013); e, mesmo para além das fronteiras do processo penal, quando o destinatário do pedido ou exigência de colaboração é somente suspeito ou alguém que apenas tem a perceção de poder vir a ser constituído arguido na sequência da sua colaboração (cf., por exemplo, a legitimação da recusa de colaboração com o responsável pela direção do procedimento administrativo quando a mesma importe a revelação de factos puníveis praticados pelo próprio ou pelos que lhe são próximos, prevista no artigo 117.º, n.º 2, alínea c), do Código do Procedimento Administrativo). Em determinadas circunstâncias justifica-se, inclusivamente, a imposição às autoridades públicas, maxime aos órgãos de polícia criminal e às autoridades judiciárias, de deveres de esclarecimento ou de advertência e de constituição como arguido de pessoas visadas em ordem a atribuir-lhes o estatuto correspondente. Há igualmente, nestes casos de relevância pré-processual, um potencial de projeção no futuro processo sancionatório, nomeadamente enquanto impedimento à valoração e consideração da colaboração autoincriminatória involuntária segundo o sentido já referido de ter sido obtida ilegitimamente por meios coercivos ou enganosos na decisão desse mesmo processo.

 

11. A Constituição não consagra expressis verbis o princípio nemo tenetur se ipsum accusare, mas tal não impede o seu reconhecimento como um princípio constitucional implícito a que corresponde um direito fundamental não escrito (neste sentido, v. entre muitos, Manuel da Costa Andrade, ob. cit., p. 120 e ss.; Jorge de Figueiredo Dias e Manuel da Costa Andrade, Poderes de supervisão, direito ao silêncio e provas proibidas (Parecer) in Supervisão, Direito ao Silêncio e Legalidade da Prova, Almedina, Coimbra, 2009, pp. 38-39 e Augusto Silva Dias e Vânia Costa Ramos, O direito à não autoinculpação (nemo tenetur se ipsum accusare) no processo penal e contraordenacional português, Coimbra Editora, Coimbra, 2009, pp. 14-15; na jurisprudência, v. os Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 695/95, 542/97, 304/2004, 181/2005, 155/2007, 461/2011, 340/2013 e 360/2016; v. também o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 14/2014, publicado no Diário da República, 1.ª série, de 21 de outubro de 2014).

Este direito à não autoincriminação em sentido amplo abrange, na sua área nuclear, o direito ao silêncio propriamente dito e desdobra-se em diversos corolários, designadamente nas situações em que esteja em causa a prestação de informações, a entrega de documentos ou outras formas de colaboração e que correspondem a zonas de proteção mais periféricas (cf. os Acórdãos n.ºs 461/2011 e 340/2013). Como referido, a intervenção do princípio nemo tenetur (e, portanto, dos direitos dele decorrentes) no processo penal ocorre sob duas formas distintas: preventivamente, impedindo soluções que façam recair sobre o arguido a obrigatoriedade de fornecer meios de prova que possam contribuir para a sua condenação; e, repressivamente, proibindo a valoração de meios de prova recolhidos com aproveitamento duma colaboração imposta ao arguido.  

Deste modo, os direitos ao silêncio e à não autoincriminação devem considerar-se incluídos nas garantias de defesa próprias do processo penal (artigo 32.º, n.º 1, da Constituição; cf. também os Acórdãos n.ºs 695/95, 461/2011 e 340/2013), não deixando estes direitos processuais de proteger mediata ou reflexamente a dignidade da pessoa humana e outros direitos fundamentais com ela conexos, como sejam os direitos à integridade pessoal, ao livre desenvolvimento da personalidade e à privacidade, não se revelando necessário, para sustentar o acolhimento constitucional, o recurso a parâmetros mais genéricos ou distantes como o direito ao processo equitativo (artigo 20.º, n.º 4, da Constituição) ou à presunção de inocência (artigo 32.º, n.º 2, da Constituição).

O princípio nemo tenetur se ipsum accusare é, na verdade, uma marca irrenunciável do processo penal de estrutura acusatória, visando, como mencionado, garantir que o arguido não seja reduzido a mero objeto da atividade estadual de repressão do crime, devendo antes ser-lhe atribuído o papel de verdadeiro sujeito processual, armado com os direitos de defesa e tratado como presumivelmente inocente. Daí que para proteção da autodeterminação do arguido, este deva ter a possibilidade de decidir, no exercício de uma plena liberdade de vontade, qual a posição a tomar perante a matéria que constitui o objeto do processo.

 

12. O mesmo princípio, todavia, não tem um caráter absoluto.

Assim, tem-se admitido que o direito à não autoincriminação pode ser legalmente restringido, no próprio processo penal, em determinadas circunstâncias (v.g., a obrigatoriedade de realização de determinados exames ou diligências que exijam a colaboração do arguido).

No âmbito da regulação económica e social do Estado, são igualmente frequentes limitações a tal princípio traduzidas na imposição de deveres de colaboração, acompanhados da previsão de sanções em caso de incumprimento, tendo por objeto a prestação de informações, escritas e orais, e a disponibilização de documentos a autoridades administrativas com atribuições em matéria de fiscalização e de supervisão e com competências sancionatórias. Reconhece-se, nesses casos, que a garantia da capacidade funcional das autoridades administrativas em ordem à realização das respetivas atribuições exige uma lógica de continuidade de atuação: por razões de eficiência, a competência sancionatória funciona como condição de eficácia da própria função de fiscalização ou supervisão, sendo a colaboração dos particulares com as autoridades imposta no pressuposto de que existem vasos comunicantes entre as duas vertentes da atuação administrativa (v., com referência à Autoridade da Concorrência e à Comissão do Mercado de Valores Mobiliários, respetivamente, os Acórdãos n.ºs 461/2011 e 360/2016; na doutrina, cf., entre outros, Jorge de Figueiredo Dias e Manuel da Costa Andrade, Poderes de supervisão, direito ao silêncio e provas proibidas (Parecer), cit., pp. 17-27; Frederico de Lacerda da Costa Pinto, O Novo Regime dos Crimes e Contra-ordenações no Código dos Valores Mobiliários, Almedina, Coimbra, 2000, p. 103 e ss.; idem, Supervisão do mercado, legalidade da prova e direito de defesa em processos de contra-ordenação (Parecer) in Supervisão, Direito ao Silêncio e Legalidade da Prova, cit., pp. 70-85; e Nuno Brandão, Colaboração com as autoridades reguladoras e dignidade penal in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 24, N.º 1 (jan.-mar., 2014), p. 29 e ss., pp. 38 e 47-51).    

Nos termos constitucionalmente exigíveis (cf. o artigo 18.º da Constituição), as mencionadas restrições devem estar previstas em lei prévia, de caráter geral e abstrato, respeitar o princípio da proporcionalidade e não diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial do preceito constitucional restringido (cf., com especial relevância para o presente caso, os Acórdãos n.ºs 461/2011, 340/2013 e 360/2016; na doutrina, v., entre outros, Jorge de Figueiredo Dias e Manuel da Costa Andrade, Poderes de supervisão, direito ao silêncio e provas proibidas (Parecer), cit., pp. 44-45; Paulo de Sousa Mendes, As garantias de defesa no processo sancionatório especial por práticas restritivas da concorrência confrontadas com a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem in Revista de Concorrência e Regulação, Ano I, N.º 1 (jan.-mar, 2010), p. 121 e ss., pp. 136-139; idem, A utilização em processo penal das informações obtidas pelos reguladores dos mercados financeiros in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Manuel da Costa Andrade, vol. II, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra, 2017, p. 587 e ss., pp. 590-594; e Nuno Brandão, Colaboração com as autoridades reguladoras e dignidade penal cit., pp. 38-47).

Deste modo, e uma vez respeitados tais requisitos, as informações prestadas pelo arguido e outros contributos probatórios, em especial a disponibilização de documentos, são exigíveis no âmbito de procedimentos de fiscalização de natureza administrativa ao abrigo dos mencionados deveres de cooperação, sendo o incumprimento destes últimos punível nos termos legalmente previstos. Acresce que, nas condições referidas, os mesmos contributos não constituem prova proibida, podendo ser considerados e valorados nos termos gerais (cf. o artigo 125.º do CPP, segundo o qual «são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei»). Entende-se, na verdade, que a imposição da colaboração em causa se justifica por razões de interesse público e de eficiência, correspondendo a um quadro legal que é ou deve ser conhecido daqueles que interagem com a Administração, razão por que não estão em causa métodos proibidos de prova, designadamente provas obtidas por via da perturbação da liberdade de vontade ou de decisão através de meios enganosos ou da ameaça com meio legalmente inadmissível (cf. o artigo 126.º, n.ºs 1 e 2, alíneas a) e d), do CPP).

Ainda assim, a lealdade na relação entre a Administração fiscalizadora e quem é fiscalizado impõe que o início de um eventual procedimento sancionatório seja devidamente sinalizado mediante uma comunicação expressa ou até por via da constituição como arguido, de modo a tornar manifesta a alteração do paradigma de relacionamento (Acórdão n.º 461/2011): já não meras rotinas de controlo, mas uma investigação com vista ao apuramento de responsabilidades, a exigir e justificar outro cuidado por parte de quem é suspeito de ter cometido uma infração (v., de novo, o Acórdão n.º 461/2011; Nuno Brandão, Colaboração com as autoridades reguladoras e dignidade penal cit., pp. 40-41; e Paulo de Sousa Mendes, A utilização em processo penal das informações obtidas pelos reguladores dos mercados financeiros cit., p. 592).

Nada disto, porém, pode interferir com o conteúdo essencial do direito à não autoincriminação: o direito ao silêncio sobre factos que lhe sejam ou possam ser imputados a título de infração (cf. o artigo 61.º, n.º 1, alínea d), do CPP), que representa um limite intransponível aos referidos deveres de colaboração. Por isso, a recusa de declarações sobre tais factos é legítima. O eventual desrespeito deste limite ao limite tem como consequência a impossibilidade de consideração ou utilização no procedimento sancionatório das declarações prestadas, visto tratar-se de prova proibida.

Refira-se, por fim, que esta abordagem é conciliável, quer com a jurisprudência Orkem do Tribunal de Justiça da União Europeia (nesse sentido, v. o Acórdão n.º 461/2011), quer com a jurisprudência do TEDH relativa aos direitos ao silêncio e à não autoincriminação, entendidos como dimensão do direito ao processo equitativo e exigência da presunção de inocência, tal como consagrados nos n.ºs 1 e 2 do artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

Com efeito, na síntese do próprio TEDH, a coerção associada a deveres de colaboração, só por si, não implica necessária e automaticamente uma violação do artigo 6.º da Convenção, isto mesmo naqueles casos em que hipotética e remotamente seja possível a instauração de um procedimento sancionatório em que a informação solicitada pudesse vir a ser utilizada (cf. os Acórdãos de 8 de abril de 2004, Weh c. Áustria, Queixa n.º 38544/97, §§ 44 e 45, e de 29 de junho de 2007, OHalloran and Francis c. Reino Unido, Queixas n.ºs 15808/02 e 25624/02, § 53).

Para além dos critérios gerais a ponderar no caso concreto (cf. o Acórdão de 11 de julho de 2006, Jalloh c. Alemanha, Queixa n.º 54810/00, § 117, e OHalloran and Francis c. Reino Unido, cit., § 55), importa considerar igualmente (cf., por exemplo, Weh c. Áustria, cit., §§ 42 e 43): (i) os casos em que a coerção é exercida sobre alguém com vista a obter informação suscetível de incriminar essa pessoa num procedimento criminal em curso ou num procedimento criminal futuro mas que, por ser antecipável logo no momento em que o pedido de colaboração é feito, afeta substancialmente essa pessoa com uma carga acusatória (ou seja, nesses casos a instauração do procedimento sancionatório já não é meramente remota ou hipotética);  e (ii) os casos referentes à utilização numa acusação criminal de informação incriminatória anteriormente obtida por via de meios coercivos fora de um procedimento criminal. Daí que, conforme referido no Acórdão n.º 340/2013, o TEDH tenha sustentado «[n]os casos Funke v. França [Acórdão de 25 de fevereiro de 1993], J.B. v. Suíça [Acórdão de 3 de maio de 2001] e Shannon v. Reino Unido [Acórdão de 4 de outubro de 2005], [] que a aplicação de sanções à falta de colaboração de contribuintes na entrega de documentos ou na prestação de informações, sobre os quais já recaía a suspeita da prática de ilícitos criminais violava o artigo 6.º da Convenção[;.e,] no caso Saunders v. Reino Unido [Acórdão de 17 de dezembro de 1996], na mesma linha, [tenha decidido] que violava o mesmo artigo 6.º da Convenção, a utilização em processo penal de prova recolhida em investigação não judicial, mediante a colaboração do arguido, obtida sob coerção da aplicação de sanções, quando sobre ele recaíam suspeitas da prática do crime pelo qual viria a ser acusado» (itálicos adicionados).

O pressuposto comum desta jurisprudência é a possibilidade de utilizar como prova incriminadora a informação que uma pessoa foi coagida a disponibilizar, convertendo-a assim em instrumento da sua própria incriminação. 

 

13. Para a decisão do presente recurso interessa considerar os deveres de colaboração previstos no quadro da inspeção tributária e, sobretudo, as condições de utilização como prova dos documentos obtidos na sequência de tal atividade inspetiva num processo penal (fiscal) movido contra o contribuinte inspecionado.

Trata-se de um domínio problemático com zonas de sobreposição relativamente ao que se passa no âmbito da regulação económica e da supervisão financeira, mas que também apresenta algumas especificidades.

Com efeito, a colaboração com a Administração tributária exigida aos contribuintes, à semelhança do que sucede relativamente a entidades reguladoras como a Autoridade da Concorrência ou a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários, é imprescindível para viabilizar o exercício da função fiscalizadora que àquela se encontra legalmente cometida. Contudo, e diferentemente do que sucede com as mencionadas entidades reguladoras que, em acréscimo às atividades específicas de regulação e supervisão, também desenvolvem procedimentos de natureza sancionatória no domínio das contraordenações, e por isso investigam e podem aplicar coimas (daí a lógica de continuidade de atuação referida, a tal propósito, nos Acórdãos n.ºs 461/2011 e 360/2016) a Administração fiscal, quando estão em causa crimes fiscais, não só não pode aplicar a sanção correspondente, como a sua atividade de investigação se encontra funcionalmente subordinada ao Ministério Público, enquanto titular da ação penal (cf. o artigo 219.º, n.º 1, da Constituição).

Acresce que, na sua raiz, o dever de colaboração com a Administração tributária se justifica principalmente por uma ideia diferente da de compensação ou contrapartida pelo exercício da liberdade de iniciativa económica ordenada a garantir a eficiência do mercado e a prevenção das suas falhas por via de uma regulação económica de interesse público, como é reconhecidamente o caso em matéria de defesa da concorrência e das demais atividades sujeitas a um quadro regulatório sectorial (cf. os Acórdãos n.ºs 461/2011 e 78/2013, ambos citando Paulo de Sousa Mendes em O procedimento sancionatório especial por infrações às regras da concorrência in Regulação em Portugal: novos tempos, novo modelo, Almedina, Coimbra, 2007, p. 717; na mesma linha, mas apontando para uma mudança estrutural do tipo de intervenção económico-social do Estado, v. Nuno Brandão, Colaboração com as autoridades reguladoras e dignidade penal cit., p. 46, que associa os deveres de colaboração à responsabilidade pública de garantia própria do Estado Garantidor).

Na verdade, o pagamento dos impostos legítimos corresponde a um dever fundamental autónomo imediatamente decorrente da própria ideia de Estado como comunidade política (cf. os artigos 103.º e 104.º da Constituição; nestes termos, v. Vieira de AndradeOs Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 5.ª ed., Almedina, Coimbra, 2012, p. 151). Como sustenta Casalta Nabais: 

«[O] imposto não pode ser encarado, nem como mero poder para o estado, nem simplesmente como um mero sacrifício para os cidadãos, mas antes como o contributo indispensável a uma vida em comum e próspera de todos os membros da comunidade organizada em estado.

Com efeito, um estado para cumprir as suas tarefas, tem de socorrer-se de recursos ou meios a exigir dos seus cidadãos, constituindo justamente os impostos esses meios ou instrumentos de realização das tarefas estaduais. Por isso, a tributação não constitui, em si mesma, um objetivo (isto é, um objetivo originário ou primário) do estado, mas sim o meio que possibilita a este cumprir os seus objetivos (originários ou primários), atualmente consubstanciados em tarefas de estado de direito e de estado social, ou seja, em tarefas de estado de direito social. []

[O] dever de pagar impostos constitui um dever fundamental como qualquer outro, com todas as consequências que uma tal qualificação implica. Um dever fundamental, porém, que tem por destinatários, não todos os cidadãos de um estado, mas apenas os fiscalmente capazes []. Isto é, não há lugar a um qualquer (pretenso) direito fundamental de não pagar impostos []. Há, isso sim, o dever de todos contribuírem, na medida da sua capacidade contributiva, para as despesas a realizar com as tarefas do estado. Como membros da comunidade que constitui o estado, [] incumbe-lhes, pois, o dever fundamental de suportar os custos financeiros da mesma, o que pressupõe a opção por um estado fiscal, que assim serve de justificação ao conjunto dos impostos, constituindo estes o preço [] a pagar pela manutenção da liberdade ou de uma sociedade civilizada.» (v. Autor cit., O Dever Fundamental de Pagar Impostos, Almedina, Coimbra, 1998, pp. 186-187).

A importância constitucional do sistema fiscal e das relações tributárias formais, em especial as obrigações acessórias, estabelecidas em ordem ao seu correto funcionamento, foram igualmente reconhecidas no Acórdão n.º 340/2013:

«[N]as sociedades modernas, o direito tributário reveste-se de enorme complexidade, sendo que o sistema fiscal e as normas relativas ao procedimento tributário têm em vista a realização de tarefas fundamentais do Estado e a salvaguarda de outros valores constitucionais. É aliás, o que resulta do artigo 103.º, n.º 1 [da Constituição], ao estabelecer que o sistema fiscal tem como finalidade a satisfação das necessidades financeiras do Estado e outras entidades públicas e uma repartição justa dos rendimentos e da riqueza. E é justamente essa importância do sistema fiscal que leva a que, no âmbito da fiscalização do cumprimento das obrigações fiscais, se estabeleçam os referidos deveres de cooperação dos contribuintes, dos quais poderão resultar a compressão de alguns direitos destes, compressão essa que é entendida como necessária no sentido de evitar que aquela superior e pública finalidade do sistema fiscal se mostre comprometida. Ou seja, tais restrições estão previstas no quadro das funções exercidas pela administração tributária destinadas ao apuramento da situação tributária dos contribuintes, sendo que não se poderá deixar de reconhecer a importância e necessidade dessa fiscalização [].

Na verdade, no domínio tributário, a necessidade da imposição de deveres de cooperação é não só perfeitamente justificada, como dificilmente prescindível. Espraiando-se o fenómeno tributário nas sociedades contemporâneas pelos mais diversos tipos de imposto, aplicáveis a uma multiplicidade de atividades e situações, a sua realização seria impensável sem o recurso a instrumentos como o dever acessório de cooperação dos contribuintes, deslocando para a esfera destes uma série de atividades que auxiliam e substituem a administração tributária na sua função de liquidação e cobrança de impostos».

No mesmo sentido essencial, e salientando o caráter instrumental do dever de colaboração no domínio tributário, Augusto Silva Dias e Vânia Costa Ramos referem mesmo: «[n]um quadro de expansão social da tributação, o contribuinte é transformado numa espécie de agente administrativo, que auxilia ou substitui a Administração Tributária na realização de determinadas tarefas de imposto» (v. Autores cits., O direito à não autoinculpação, cit., pp. 43-44).

Recorde-se que, nos termos do artigo 31.º da LGT, «[c]onstitui obrigação principal do sujeito passivo efetuar o pagamento da dívida tributária» (n.º 1); e que «[s]ão obrigações acessórias do sujeito passivo as que visam possibilitar o apuramento da obrigação de imposto, nomeadamente a apresentação de declarações, a exibição de documentos fiscalmente relevantes, incluindo a contabilidade ou escrita, e a prestação de informações» (itálicos adicionados).

A importância destas últimas obrigações e a correlativa gravidade do seu incumprimento são atestadas pela incriminação, a título de fraude fiscal, de condutas do contribuinte tendentes a impedir a liquidação, entrega ou pagamento da prestação tributária ou a obtenção indevida de vantagens patrimoniais suscetíveis de causarem diminuição de receitas tributárias como, por exemplo, a «ocultação ou alteração de factos ou valores que devam constar dos livros de contabilidade ou escrituração, ou das declarações apresentadas ou prestadas a fim de que a administração fiscal especificamente fiscalize, determine, avalie ou controle a matéria coletável»; ou a «ocultação de factos ou valores não declarados e que devam ser revelados à administração tributária» (cf. os artigos 103.º e 104.º do RGIT).

Como sublinha Germano Marques da Silva, «[é] «natural que, como consequência do sistema de autoliquidação dos tributos, a Administração Tributária goze de amplas faculdades para pedir informações que visam comprovar o facto tributário em questão e que o contribuinte exterioriza através das suas declarações tributárias. Este dever de colaboração decorre naturalmente do dever geral de colaboração dos administrados com a Administração em vista da satisfação dos interesses públicos do Estado» (v. Autor cit., Direito Penal Tributário, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2018, p. 175).

Tal colaboração, ordenada ao cumprimento da obrigação de pagar o imposto legalmente devido, é recíproca e assenta numa base de confiança: o contribuinte e a Administração cooperam entre si, acreditando cada um que o outro atua de boa fé, em ordem à consecução daquele objetivo comum. Isso mesmo resulta da LGT:

«Artigo 59.º

Princípio da colaboração

1 - Os órgãos da administração tributária e os contribuintes estão sujeitos a um dever de colaboração recíproco.

2 - Presume-se a boa fé da atuação dos contribuintes e da administração tributária.

3 - A colaboração da administração tributária com os contribuintes compreende, designadamente:

[]

c) A assistência necessária ao cumprimento dos deveres acessórios;

d) A notificação do sujeito passivo ou demais interessados para esclarecimento das dúvidas sobre as suas declarações ou documentos;

e) A prestação de informações vinculativas, nos termos da lei;

[]

j) O direito ao conhecimento pelos contribuintes da identidade dos funcionários responsáveis pela direção dos procedimentos que lhes respeitem;

l) A comunicação antecipada do início da inspeção da escrita, com a indicação do seu âmbito e extensão e dos direitos e deveres que assistem ao sujeito passivo.

m) Informação ao contribuinte dos seus direitos e obrigações, designadamente nos casos de obrigações periódicas;

n) A interpelação ao contribuinte para proceder à regularização da situação tributária e ao exercício do direito à redução da coima, quando a administração tributária detete a prática de uma infração de natureza não criminal.

4 - A colaboração dos contribuintes com a administração tributária compreende o cumprimento das obrigações acessórias previstas na lei e a prestação dos esclarecimentos que esta lhes solicitar sobre a sua situação tributária, bem como sobre as relações económicas que mantenham com terceiros.

[]»

A cooperação com a Administração fiscal encontra-se igualmente prevista no artigo 48.º, n.º 2, do Código do Procedimento e de Processo Tributário, aprovado pelo artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 433/99, de 26 de outubro (CPPT): «[o] contribuinte cooperará de boa-fé na instrução do procedimento, esclarecendo de modo completo e verdadeiro os factos de que tenha conhecimento e oferecendo os meios de prova a que tenha acesso»; e no artigo 9.º, n.º 1, do RCPITA: «[a] inspeção tributária e os sujeitos passivos ou demais obrigados tributários estão sujeitos a um dever mútuo de cooperação».

Saliente-se a importância deste último diploma, já que o mesmo disciplina especificamente as ações de verificação do cumprimento das obrigações tributárias e de prevenção das infrações tributárias, ainda que sem prejuízo do disposto na LGT sobre a mesma matéria (cf. o artigo 54.º, n.º 6, da LGT, que tem uma relevância especial devido ao disposto no respetivo artigo 63.º referente à matéria de inspeção; v. também os artigos 44.º, n.º 2.º, do CPPT, e 2.º, n.º 1, do RCPITA).

Os deveres de colaboração procedimental no âmbito tributário são robustecidos, por comparação com o dever geral de cooperação previsto no Código de Procedimento Administrativo, uma vez que a sua eventual violação é punível como crime de desobediência (cf. o artigo 348.º, n.º 1, do Código Penal) ou como contraordenação (cf. os artigos 113.º, 116.º e 117.º do RGIT). In casu, tem especial interesse a cominação do artigo 113.º, n.º 1, do RGIT:

«Quem dolosamente recusar a entrega, a exibição ou apresentação de escrita, de contabilidade ou de documentos fiscalmente relevantes a funcionário competente, quando os factos não constituam fraude fiscal, é punido com coima de 375 a 75000» (v. também o artigo 32.º, n.º 1, do RCPITA; itálico adicionado).

Relativamente às inspeções tributárias, pode decerto afirmar-se com Nuno Brandão que, «[p]or norma, o objetivo primário das fiscalizações empreendidas pela Administração Tributária não é o de indagar possíveis infrações penais ou contraordenacionais cometidas pelos contribuintes, mas apurar a sua situação tributária e liquidar os impostos que porventura se encontrem em falta. Para que tal tarefa possa desenrolar-se em condições de eficácia é imprescindível a colaboração das pessoas fiscalizadas, mediante prestação de informações, entrega de documentos, apresentação da contabilidade, etc. Tudo exigências que as leis tributárias impõem à saciedade e que o RGIT reforça com a cominação de coimas para a sua violação. Se da atividade fiscalizadora puder resultar a imputação de crimes ou contraordenações fiscais é essa, em todo o caso, uma consequência reflexa» (v. Autor cit., Colaboração com as autoridades reguladoras e dignidade penal cit., p. 45).

Mas, por outro lado, também não se pode ignorar que, na grande maioria dos casos no âmbito fiscal, «a notitia criminis é obtida pelos agentes da Administração Tributária no decurso das inspeções tributárias» (assim, v. Germano Marques da Silva, Direito Penal Tributário, cit., p. 161).

 

14. A questão de constitucionalidade objeto do presente recurso emerge precisamente da possibilidade de ligação entre os dois procedimentos, o de inspeção tributária e o processo penal fiscal, regidos por princípios de sinal contrário no que se refere à posição processual do contribuinte: respetivamente, o princípio da cooperação com a Administração e o princípio nemo tenetur se ipsum accusare.

No tocante ao procedimento inspetivo, cumpre ter presente o disposto no artigo 63.º, n.º 1, da LGT, que, sob a epígrafe «Inspeção», concretiza, no domínio da inspeção, o dever geral de colaboração estatuído no artigo 59.º, n.º 4, do mesmo diploma, estabelecendo o seguinte:

«1 - Os órgãos competentes podem, nos termos da lei, desenvolver todas as diligências necessárias ao apuramento da situação tributária dos contribuintes, nomeadamente:

a) Aceder livremente às instalações ou locais onde possam existir elementos relacionados com a sua atividade ou com a dos demais obrigados fiscais;

b) Examinar e visar os seus livros e registos da contabilidade ou escrituração, bem como todos os elementos suscetíveis de esclarecer a sua situação tributária;

c) Aceder, consultar e testar o seu sistema informático, incluindo a documentação sobre a sua análise, programação e execução;

d) Solicitar a colaboração de quaisquer entidades públicas necessária ao apuramento da sua situação tributária ou de terceiros com quem mantenham relações económicas;

e) Requisitar documentos dos notários, conservadores e outras entidades oficiais;

f) Utilizar as suas instalações quando a utilização for necessária ao exercício da ação inspetiva.»

Estas regras, assim como os princípios e obrigações enunciados nos artigos 31.º, n.º 2, e 59.º da mesma Lei, e outrossim o dever de cooperação com a inspeção previsto no artigo 9.º, n.º 1, do RCPITA, são depois concretizados neste mesmo diploma, a propósito das «Garantias do exercício da função inspetiva» (epígrafe do capítulo I do seu título IV), de modo particular nos artigos 28.º (Garantias de eficácia [da inspeção tributária]) e 29.º (Prerrogativas da inspeção tributária).

O primeiro estatui no seu n.º 1 que «cabe genericamente às autoridades públicas e às entidades inspecionadas facultar à inspeção tributária, nos termos da lei, todas as condições necessárias à eficácia da sua ação». No n.º 2 deste artigo, são concretizados os direitos dos funcionários em serviço de inspeção tributária, nos seguintes termos:

«2 - Os funcionários em serviço de inspeção tributária têm direito, nos termos do número anterior:

a) Ao livre acesso às instalações e dependências da entidade inspecionada pelo período de tempo necessário ao exercício das suas funções;

b) À disposição das instalações adequadas ao exercício das suas funções em condições de dignidade e eficácia;

c) Ao exame, requisição e reprodução de documentos, mesmo quando em suporte informático, em poder dos sujeitos passivos ou outros obrigados tributários, para consulta, apoio ou junção aos relatórios, processos ou autos;

d) À prestação de informações e ao exame dos documentos ou outros elementos em poder de quaisquer serviços, estabelecimentos e organismos, ainda que personalizados, do Estado, das Regiões Autónomas e autarquias locais, de associações públicas, de empresas públicas ou de capital exclusivamente público, de instituições particulares de solidariedade social e de pessoas coletivas de utilidade pública;

e) À troca de correspondência, em serviço, com quaisquer entidades públicas ou privadas sobre questões relacionadas com o desenvolvimento da sua atuação;

f) Ao esclarecimento, pelos técnicos oficiais de contas e revisores oficiais de contas, da situação tributária das entidades a quem prestem ou tenham prestado serviço;

g) À adoção, nos termos do presente diploma, das medidas cautelares adequadas à aquisição e conservação da prova;

h) À requisição às autoridades policiais e administrativas da colaboração necessária ao exercício das suas funções, no caso de ilegítima oposição do contribuinte à realização da inspeção.»

Já o referido artigo 29.º dispõe o seguinte:

«1 - O exercício das garantias de eficácia previstas no artigo anterior pode concretizar-se através das seguintes faculdades dos funcionários em serviço de inspeção tributária:

a) Examinar quaisquer elementos dos contribuintes que sejam suscetíveis de revelar a sua situação tributária, nomeadamente os relacionados com a sua atividade, ou de terceiros com quem mantenham relações económicas e solicitar ou efetuar, designadamente em suporte magnético, as cópias ou extratos considerados indispensáveis ou úteis;

b) Proceder à inventariação física e avaliação de quaisquer bens ou imóveis relacionados com a atividade dos contribuintes, incluindo a contagem física das existências, da caixa e do imobilizado, e à realização de amostragens destinadas à documentação das acções de inspecção;

c) Aceder, consultar e testar os sistemas informáticos dos sujeitos passivos e, no caso de utilização de sistemas próprios de processamento de dados, examinar a documentação relativa à sua análise, programação e execução, mesmo que elaborados por terceiros;

d) Consultar ou obter dados sobre preços de transferência ou quaisquer outros elementos associados ao estabelecimento de condições contratuais entre sociedades ou empresas nacionais ou estrangeiras, quando se verifique a existência de relações especiais nos termos do n.º 4 do artigo 58.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas;

e) Tomar declarações dos sujeitos passivos, membros dos corpos sociais, técnicos oficiais de contas, revisores oficiais de contas ou de quaisquer outras pessoas, sempre que o seu depoimento interesse ao apuramento dos factos tributários;

f) Controlar, nos termos da lei, os bens em circulação;

g) Solicitar informações às administrações tributárias, estrangeiras, no âmbito dos instrumentos de assistência mútua e cooperação administrativa internacional.

2 - Para efeitos do disposto na alínea a) do número anterior, consideram-se suscetíveis de revelar a situação tributária dos contribuintes os seguintes elementos:

a) Os livros obrigatórios previstos na legislação comercial e fiscal;

b) Os registos contabilísticos e os documentos com eles relacionados, incluindo os programas e suportes magnéticos;

c) Os registos auxiliares da contabilidade;

d) Os documentos e registos relativos ao custeio das existências ou à contabilidade analítica;

e) Outra documentação interna ou externa relativa às operações económicas e financeiras efetuadas com clientes, fornecedores, instituições de crédito, sociedades e quaisquer outras entidades, incluindo os extratos processados pelas instituições de crédito e sociedades financeiras, os contratos celebrados, os orçamentos sobre trabalhos realizados ou encomendados a terceiros, os estudos realizados ou encomendados a terceiros e as tabelas de preços estabelecidos;

f) Os relatórios, pareceres e restante documentação emitida por técnicos oficiais de contas, revisores oficiais de contas, advogados, consultores fiscais e auditores externos;

g) A correspondência recebida e expedida relacionada com a atividade.

3 - A inspeção tributária pode ainda, atendendo à sua necessidade e ao princípio da proporcionalidade, proceder às seguintes diligências prospetivas ou de informação:

a) Enviar aos contribuintes, bem como a quaisquer outras entidades públicas ou privadas, questionários quanto a dados e factos de carácter específico relevantes para a definição e controlo da sua situação tributária ou de terceiros, os quais deverão ser devolvidos depois de devidamente preenchidos e assinados;

b) Solicitar às entidades referidas na alínea anterior o envio de cópia de documentos e informações relevantes para o apuramento e controlo da sua situação ou de terceiro, designadamente faturas, documentos de transporte, registos contabilísticos e cópias ou extratos de atos e documentos de cartórios notariais, conservatórias e outros serviços oficiais.

4 [].»

No caso português, e diferentemente do que sucede no âmbito de outras ordens jurídicas  como, por exemplo, a alemã (cf. o § 393 da Abgabenordnung) , vigora um princípio de comunicabilidade entre o procedimento de inspeção tributária e o processo penal tributário. Com efeito, um dos objetivos do procedimento de inspeção tributária é «a prevenção das infrações tributárias», pelo que a atividade inspetiva também compreende a «promoção, nos termos da lei, do sancionamento das infrações tributárias» (cf., respetivamente, os n.ºs 1 e 2, alínea i), do artigo 2.º do RCPITA; v. também a referência no n.º 3 do mesmo artigo às «infrações fiscais a investigar»). Por outro lado, o relatório da inspeção deve obrigatoriamente indicar as infrações verificadas e os autos de notícia levantados (cf. o artigo 62.º, n.º 3, alínea j), do RCPITA).

Acresce que o RGIT confere à Administração tributária, durante o inquérito, os poderes e funções que o CPP atribui aos órgãos e às autoridades de polícia criminal e presume delegada nos mesmos a prática de atos que o Ministério Público pode atribuir àquelas entidades no âmbito do CPP, independentemente do valor da vantagem patrimonial ilegítima (cf. os artigos 40.º, n.º 2, e 41.º, n.ºs 1, alínea b), e 2; v. também os artigos 55.º e 270.º, ambos do CPP). Ou seja, os órgãos da Administração fiscal são equiparados a órgãos de polícia criminal e atuam no inquérito sob a direção do Ministério Público e na sua dependência funcional (artigo 56.º do CPP). Por isso, podem instaurar o inquérito criminal, no exercício de tal delegação de poderes, devendo fazê-lo, em razão do princípio da legalidade, logo que adquiram notícia do crime; quando o fizerem, devem comunicar tal facto de imediato ao Ministério Público (cf. os artigos 35.º, n.ºs 1 e 4, e 40.º, n.ºs 1 e 3).

Por outro lado, nos casos em que a notícia do crime não é adquirida por conhecimento próprio da Administração fiscal, a mesma é sempre informada da sua existência e, consequentemente, da instauração do inquérito (cf. o artigo 35.º, n.º 2, do RGIT).

Deste modo, na fase de inquérito de um processo pela prática de crime fiscal movido contra certo contribuinte, a Administração tributária que realiza uma inspeção ao mesmo contribuinte não pode desconhecer que este último também está a ser investigado em ordem a determinar a sua responsabilidade pela prática dos factos correspondentes a tal crime.

Daqui não decorre, todavia, uma necessária absorção da atividade de inspeção tributária pelo processo criminal ou a perda de autonomia de ambos os procedimentos. Pelo contrário, os n.ºs 2 e 4 do artigo 42.º do RGIT pressupõem a sua tramitação simultânea:

«2 - No caso de ser intentado procedimento ou processo tributário em que se discuta situação tributária de cuja definição dependa a qualificação criminal dos factos, não é encerrado o inquérito enquanto não for praticado ato definitivo ou proferida decisão final sobre a referida situação tributária [].»

«4 - Não serão concluídas as investigações enquanto não for apurada a situação tributária ou contributiva da qual dependa a qualificação criminal dos factos [].»

Nas situações mais comuns, adquirida a notícia do crime pela Administração fiscal no decurso de uma inspeção tributária, deve ser instaurado o pertinente inquérito e esse facto deve ser «de imediato» comunicado ao Ministério Público, conforme previsto no artigo 40.º, n.º 3, do RGIT. A inspeção no âmbito da qual foi adquirida a notícia do crime fiscal deve prosseguir:

«[O] n.º 2 do art. 42.º [do RGIT] dispõe que o inquérito não será encerrado enquanto não for praticado ato definitivo ou proferida decisão final sobre a situação tributária, suspendendo-se mesmo o prazo para a conclusão do inquérito. Parece, por isso, que o procedimento de inspeção prossegue para apuramento da situação tributária do arguido, mesmo depois de instaurado o processo criminal. E parece também que nada impede que os atos de inspeção e a prática dos atos de inquérito sejam atribuídos aos mesmos funcionários ou agentes» (assim, v. Germano Marques da Silva, Direito Penal Tributário, cit., p. 161).

 

15. O critério sob fiscalização neste recurso não respeita diretamente ao dever de entrega de documentos no âmbito de um procedimento de inspeção, mas tão somente à utilização como prova em processo penal de documentos que foram facultados pelo suspeito ou já arguido ou obtidos pela Administração fiscal no decurso de uma inspeção em que o mesmo, na sua qualidade de contribuinte, se encontra sujeito a deveres de cooperação nos termos anteriormente referidos. Ou seja, a disponibilização dos documentos em causa é efetuada no cumprimento de uma colaboração devida a entidade que reúne poderes de fiscalização administrativa no quadro da inspeção tributária com poderes de investigação criminal, enquanto órgão e autoridade de polícia criminal, beneficiária de uma presunção legal relativa à delegação de amplos poderes quanto a diligências e investigações relativas ao inquérito criminal.

Como este Tribunal considerou no Acórdão n.º 340/2013, existe, por isso, uma interligação entre o processo inspetivo e o processo criminal, já que a referida documentação é relevante, não apenas para efeitos do processo de inspeção, podendo dar lugar à correção da situação tributária do contribuinte, mas também para efeitos do processo penal, enquanto prova da sua responsabilidade criminal. Assim:

«Uma vez que o incumprimento dos deveres de cooperação pode dar lugar a responsabilidade penal ou contraordenacional, o contribuinte pode ver-se na contingência de, caso se recuse a colaborar com a Administração tributária, sujeitar-se a ser sancionado com a aplicação da correspondente pena ou coima ou de, caso aceite colaborar, dar lugar a que a Administração consiga obter, à sua custa, elementos de prova que venham a sustentar a acusação por crime fiscal.

É justamente devido à circunstância de o contribuinte poder ver-se colocado perante esta alternativa que, neste âmbito, podem surgir tensões com o direito à não autoincriminação, colocando-se a questão de saber se a conjugação do referido dever de colaboração com a possibilidade de utilização dos documentos facultados à administração tributária, no cumprimento do referido dever, como prova em procedimento criminal deduzido com fundamento nos resultados da referida inspeção, implica uma compressão do princípio nemo tenetur se ipsum accusare.

Tendo presente que, no campo tributário, a realidade sob fiscalização da administração estadual coincide, pelo menos parcialmente, com os elementos fácticos que integram os tipos incriminadores e que os poderes de fiscalização das situações tributárias dos contribuintes e os poderes de investigação no âmbito de processos de natureza penal, neste domínio, estão, no nosso ordenamento jurídico, atribuídos pela lei às mesmas entidades (cfr. artigos 40.º, n.º 2, 41.º, n.º 1, alíneas a) e b) 52.º e 59.º do RGIT), há o risco de que a atividade inspetiva funcione como uma antecâmara do processo penal, sendo no seu decurso que são recolhidos os elementos que motivam a instauração de um procedimento criminal.»

E as consequências então retiradas valem igualmente no caso sub iudicio:

«Daí que tenha justificação que o princípio nemo tenetur se ipsum accusare ultrapasse as barreiras formais do processo penal e que, nestes casos, se estenda a esta interação entre o processo inspetivo e o processo penal, embora a proteção conferida por este princípio tenda a relativizar-se, cedendo mais facilmente no confronto com outros princípios, direitos ou interesses merecedores de tutela, que têm de ser harmonizados em concreto, por meio de uma compatibilização ou concordância prática, dado intervir em zona periférica da sua área de atuação.

Sendo certo que a imposição aos contribuintes de deveres de cooperação com a administração tributária, que poderá incluir a entrega, a solicitação desta, de documentos que, depois, num processo de natureza sancionatória penal, possam ser usados contra esses próprios contribuintes, constitui uma compressão do princípio nemo tenetur se ipsum accusare, que se traduz numa restrição não desprezível daquele princípio, importa apreciar se tal restrição é ou não constitucionalmente aceitável.

A resposta a essa questão terá de passar pela verificação dos pressupostos enunciados no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição, como condição da admissibilidade de restrições a direitos, liberdades e garantias: estarem essas restrições previstas em lei prévia e expressa, de forma a respeitar a exigência de legalidade e obedecerem tais restrições ao princípio da proporcionalidade, tendo como finalidade a salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente garantidos.»

No fundo, está em causa apreciar a legitimidade de restrições ao princípio nemo tenetur se ipsum accusare anteriormente discutida (cf. supra o n.º 12), agora com referência aos deveres de cooperação legalmente previstos no âmbito do procedimento de inspeção tributária e a documentos disponibilizados ou obtidos no seu decurso.

Recorde-se, de todo o modo, que, na situação subjacente à apreciação feita naquele Acórdão, os documentos em causa foram obtidos em resultado de uma inspeção realizada antes de estar indiciada a prática de qualquer crime fiscal e, portanto, antes de ter sido instaurado o correspondente inquérito criminal.

 

16. A aludida «compressão do princípio nemo tenetur se ipsum accusare» e a consequente admissibilidade da utilização como prova em processo penal fiscal dos documentos obtidos em resultado da inspeção tributária foi considerada constitucionalmente admissível, atento um juízo positivo quanto à verificação dos requisitos de legitimidade das restrições a direitos, liberdades e garantias.

Desde logo, a restrição em análise, consubstanciada no dever de cooperação com a inspeção tributária, encontra-se prevista em lei geral e abstrata (cf. as referências aos artigos 59.º e 63.º da LGT e aos artigos 28.º e 29.º do RCPITA, supra no n.º 14). Acresce que, como igualmente referido: (i) a inspeção tributária, entre outras finalidades, «visa [também] a verificação do cumprimento das obrigações tributárias e a prevenção das infrações tributárias», compreendendo, por isso, a «promoção, nos termos da lei, do sancionamento das infrações tributárias e «[q]uaisquer outras ações de averiguação ou investigação de que a Administração tributária seja legalmente incumbida» (cf. o artigo 2.º, n.ºs 1 e 2, alíneas i) e l), do RCPITA); e (ii) os poderes de investigação criminal relativamente a crimes fiscais são legalmente atribuídos a serviços da Administração tributária (cf. os artigos 40.º, n.º 2, e 41.º, n.ºs 1, alínea b), e 2, ambos do RGIT). Existe deste modo, uma conexão funcional e orgânica entre a colaboração procedimental no quadro do procedimento de inspeção e e a investigação criminal na fase de inquérito.

Depois, o Tribunal, no acórdão em referência, perspetivou o dever de colaboração do contribuinte com a inspeção tributária legalmente previsto como uma limitação do nemo tenetur justificada pela relevância constitucional dos fins servidos por tal atividade inspetiva, nomeadamente a garantia de que o sistema fiscal possa efetivamente desempenhar as suas funções no tocante à satisfação das necessidades financeiras do Estado e à justa repartição dos rendimentos e da riqueza. Por outro lado, também não deixou de se considerar, ainda neste plano da finalidade da restrição, que, «como a aplicação duma sanção penal exige a prova da prática do ilícito imputado ao arguido, a inutilização dos elementos recolhidos durante a inspeção à situação tributária conduziria a uma quase certa imunidade penal, como resultado da colaboração verificada na fase inspetiva []: o cumprimento da lei na fase de inspeção acabaria por impedir o cumprimento da lei na fase sancionatória, não sendo possível que um sistema jurídico racional subsistisse com uma antinomia desta natureza».

  Finalmente, quanto à avaliação dos testes da proporcionalidade, ponderou-se no Acórdão n.º 340/2013:

«[A] restrição em causa respeita o critério da proporcionalidade, sendo adequada, isto é, constituindo um meio idóneo para a prossecução e proteção dos referidos interesses merecedores de proteção constitucional, e necessária, em virtude da mesma corresponder quer a um meio exigível no sentido de obter o fim da eficiência do sistema fiscal, objetivo esse que não se mostra que seria alcançável através de mecanismos alternativos que se revestiriam de excessiva onerosidade para a administração tributária, quer pelo dispêndio de recursos e de tempo, quer pelo risco de ineficácia, face à complexidade, dimensão e multiplicidade de atividades e situações a que têm de responder os modernos sistemas fiscais, no quadro de uma Administração de massas.

Acresce ainda que as referidas restrições respeitam a proporcionalidade em sentido estrito, uma vez que se podem considerar equilibradas, visto que contém mecanismos flanqueadores que salvaguardam uma adequada ponderação dos concretos bens jurídicos constitucionais em confronto, ou seja, entre o direito que é objeto de restrição e dos valores ou interesses que justificam a restrição.

Com efeito, apesar da absoluta necessidade de cooperação dos contribuintes nas tarefas da administração tributária, não está completamente vedada a estes a possibilidade de recusar tal colaboração. De acordo com o artigo 63.º, n.º [5, da LGT,] é legítimo ao contribuinte não cooperar na realização das diligências previstas no n.º 1, quanto as mesmas impliquem:

a) O acesso à habitação do contribuinte;

b) A consulta de elementos abrangidos pelo segredo profissional, bancário ou qualquer outro dever de sigilo legalmente regulado, salvo os casos de consentimento do titular ou de derrogação do dever de sigilo bancário pela administração tributária legalmente admitidos;

c) O acesso a factos da vida íntima dos cidadãos;

d) A violação dos direitos de personalidade e outros direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, nos termos e limites previstos na Constituição e na lei.

E na previsão desta última alínea não deixam de [estar] incluídas as garantias de defesa em processo penal, designadamente o direito à não autoincriminação, o qual, como já vimos, é extensível à fase inspetiva tributária [].

E, em caso de oposição do contribuinte com fundamento nestas circunstâncias, a diligência só poderá ser realizada mediante autorização concedida pelo tribunal da comarca competente com base em pedido fundamentado da administração tributária (n.º [6] do artigo 63.º, da LGT []).

Significa isto que, nas situações previstas no artigo 63.º, n.º [5, da LGT], o contribuinte não está colocado, pura e simplesmente, perante a alternativa de cumprir o dever de cooperação, dando lugar a que a administração tributária venha a obter, à sua custa, a prova que sustenta a acusação por crime fiscal, ou de recusar a colaboração, sujeitando-se a ser sancionado com a aplicação da correspondente pena ou coima por essa falta de colaboração, podendo legitimamente recusá-la, nos casos e termos acima referidos, o que constitui uma primeira válvula de escape que atenua as exigências decorrentes do dever de colaboração.

Além disso, assistirá também ao contribuinte sujeito a fiscalização, o direito a requerer a sua constituição como arguido, sempre que estiverem a ser efetuadas diligências destinadas a comprovar a suspeita da prática de um crime, nos termos do artigo 59.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, o que permitirá que este passe a dispor dos direitos inerentes ao respetivo estatuto, designadamente o direito à não autoincriminação.

Finalmente, a utilização como prova em processo penal de documentos obtidos na atividade de fiscalização tributária, não deixará de ser proibida, nos termos do artigo 126.º, n.º 2, a), do Código de Processo Penal, quando se revele que a entidade fiscalizadora tenha desencadeado ou prolongado deliberadamente a fase inspetiva, com a finalidade de recolher meios de prova para o processo penal a instaurar, abusando do dever de colaboração do contribuinte.

Assim, numa ponderação entre o princípio nemo tenetur se ipsum accusare e a restrição que ao mesmo é imposta no caso concreto e os valores constitucionais que se pretendem salvaguardar com essa restrição, é de entender que a mesma não se revela desproporcionada.» (itálicos adicionados).

 

17. É evidente que, numa situação como a dos presentes autos em que está em causa a inspeção ao contribuinte realizada quando já corre contra ele um inquérito criminal tendo em vista a comprovação de factos que consubstanciam um crime fiscal, a própria ideia de mecanismos flanqueadores é, em si mesma, muito discutível. Com efeito, encontrando-se pendente o processo criminal, é no respetivo quadro que as respostas para a utilização no mesmo de documentos previamente obtidos ao abrigo do dever de colaboração têm de ser encontradas. Com referência a tais documentos, já nada há para flanquear: a única questão a esclarecer é a de saber se os mesmos podem ser utilizados ou não.

De todo o modo, sempre se poderá entender, numa perspetiva ex ante relativamente à entrega dos documentos, que a oposição à inspeção com fundamento na salvaguarda dos direitos de defesa no processo penal e o exercício do direito de ser constituído arguido só seriam verdadeiramente eficazes, caso: (i) a inspeção tributária não pudesse ser realizada a um contribuinte que seja arguido num processo penal tributário em que os mesmos factos estejam em discussão; ou (ii) os materiais incriminatórios obtidos nessa inspeção não pudessem ser utilizados depois no processo penal movido contra o contribuinte inspecionado.

Contudo, e no que se refere ao primeiro aspeto, é a própria lei a admitir a tramitação simultânea de um procedimento de inspeção e de um processo penal tributário relativamente ao mesmo contribuinte e tendo por objeto a situação atinente aos mesmos factos tributários (cfr. supra o n.º 14, a propósito do artigo 42.º, n.ºs 2 e 4, do RGIT). Prosseguindo a inspeção, a mesma deve continuar dotada das mesmas garantias de eficácia e, por conseguinte, o dever de cooperação mantém-se ou pode manter-se, nos termos do artigo 63.º, n.ºs 5 e 6, da LGT. Questão diferente é a da possibilidade de utilização, como prova no processo penal tributário a correr paralelamente, da documentação entregue pelo próprio contribuinte no cumprimento do seu dever de colaboração num momento em que em relação ao mesmo contribuinte existem indícios de que cometeu um crime fiscal designadamente, os indícios consubstanciados na notícia do crime justificativa da instauração do inquérito contra esse contribuinte. Mas esse problema corresponde justamente ao objeto da questão de constitucionalidade suscitada no presente recurso: saber se tal utilização, nas circunstâncias descritas, ainda é legítima ou não deverá ser considerada inadmissível por força do nemo tenetur.

 Por outro lado, uma vez que a Administração fiscal não poder desconhecer, enquanto órgão e autoridade de polícia criminal, a pendência de um inquérito criminal contra o contribuinte inspecionado (cf. o artigo 35.º do RGIT), a eventual omissão de comunicação da mesma ao visado representa objetivamente uma deslealdade grave e contrária à boa fé que deve pautar o relacionamento entre a Administração e os contribuintes no quadro das relações tributárias formais (cf. o artigo 59.º, n.º 2, da LGT), porquanto o risco de instrumentalização da colaboração do contribuinte é elevadíssimo: os documentos disponibilizados pelo contribuinte no procedimento de inspeção com o objetivo de esclarecer a sua situação tributária e de viabilizar a liquidação adicional do imposto eventualmente em falta, porque já foi iniciada uma investigação visando o apuramento da responsabilidade criminal do mesmo contribuinte, vão, com toda a probabilidade, ser utilizados também para esse fim, convertendo o contribuinte numa espécie de co-instrutor do processo.

Antes de instaurado o inquérito criminal, os documentos disponibilizados ao abrigo do dever de colaboração podem ser aproveitados para instruir este último atendendo às razões justificativas da restrição do nemo tenetur (cf. supra os n.ºs 13 e 16). O risco de abuso do dever de colaboração do contribuinte existe, mas depende de uma atuação de má fé da Administração tributária, que não pode ser presumida. Em si mesma, a solução de aproveitar aquele material não é abusiva; aliás, visa prevenir um resultado que redundaria numa «imunidade penal» (Acórdão n.º 340/2013). Acresce que estão em causa informações que não podiam ser recolhidas de outro modo. É verdade que tal utilização no âmbito do processo penal tributário implica um desvio de fim (os documentos entregues ao abrigo de deveres de cooperação e sob a ameaça de sanções são utilizados para uma finalidade diferente daquela que justificou a sua entrega), mas o mesmo, além de eventual e consequencial, ainda se pode considerar justificado com base na ponderação feita entre os benefícios para o interesse público alcançado e os custos impostos por tal solução para o interesse da defesa penal do contribuinte.

Depois de iniciado o processo criminal, o eventual aproveitamento de tais informações nesse processo, já não se pode considerar meramente casual e justificado pela necessidade de prevenir qualquer imunidade. A sua única justificação residirá, então, apenas em preocupações de eficácia e de eficiência da própria perseguição criminal. E o desvio de fim traduzido na utilização no processo penal de informações e material probatório recolhidos à margem das diligências de prova legalmente admitidas no quadro processual penal não pode deixar de estar presente ab initio, isto é desde que é exigida ao contribuinte a entrega dos documentos. O mesmo é dizer que tal desvio é inerente à própria admissibilidade da utilização desse material probatório no âmbito do processo penal tributário.

Com efeito, a exigência de entrega de documentos é feita pela Administração fiscal num momento em que a mesma já desempenha um duplo papel, como inspeção tributária e como órgão de polícia criminal. Ora, dada a diversidade de regimes aplicáveis a cada um desses papéis, não é indiferente para determinar as possibilidades de atuação, seja da Administração aquilo que esta pode exigir , seja do contribuinte aquilo que ele está obrigado a fazer , saber qual a função concretamente em causa numa dada situação. Deste modo, utilizar no processo penal documentos obtidos coativamente do contribuinte por via da inspeção, que não poderiam ser obtidos do mesmo modo seguindo a via do processo penal, significa transformar a colaboração do contribuinte num meio de obtenção de prova contra si próprio. Do ponto de vista deste último, e nessa medida, há uma atuação objetivamente enganosa porque camuflada por parte da Administração fiscal, suscetível de relevar nos termos do artigo 126.º, n.º 2, alínea a), do CPP: o contribuinte é levado a pensar que fornece os documentos estritamente para os fins específicos da inspeção, uma vez que é interpelado ao abrigo do dever de cooperação previsto na LGT e no RCPITA, apurando-se depois que, afinal, os mesmos documentos são utilizados num processo criminal já existente à data da solicitação da entrega dos documentos e no âmbito do qual tal solicitação não poderia ser feita sob a ameaça de sanções.

A instrumentalização do dever de colaboração decorrente da utilização dos documentos para um fim diferente daquele para o qual foram entregues e, portanto, o abuso do mesmo dever, é patente.

Além disso, continuar a admitir a relevância do dever de colaboração, enquanto restrição ao nemo tenetur, para efeitos de legitimar a utilização no processo penal de meios de prova obtidos em razão do cumprimento de tal dever, criaria neste último processo um enorme desequilíbrio favorável à acusação e desfavorável ao arguido, comprometendo a possibilidade de autodeterminação deste na condução da sua defesa e, em última análise, a sua posição enquanto sujeito processual. Nada justifica que o tratamento processual penal do contribuinte, que também seja suspeito ou arguido, possa ser mais desfavorável do que o tratamento de qualquer outro suspeito ou arguido. Recordem-se, a este propósito, as faculdades e prerrogativas concedidas à Administração tributária a título de garantias do exercício da função inspetiva, previstas nos artigos 28.º e 29.º do RCPITA (cf. supra o n.º 14), sem paralelo tão generoso no quadro processual penal.

A pendência de um inquérito instaurado na sequência da notícia de crime tributário significa, no mínimo, a existência de indícios de que foi cometida tal infração. A subsequente realização de uma inspeção tributária, necessariamente dirigida a contribuintes determinados, já não é dissociável de tal suspeita e, por conseguinte, não pode deixar de ser vista também como uma diligência de investigação criminal que afeta pessoalmente o contribuinte-suspeito. Daí que a colaboração legalmente devida com a inspeção tributária redunde inevitavelmente numa colaboração forçada com a investigação criminal levada a cabo pela mesma Administração, no seu papel de órgão de polícia criminal. E esta última colaboração, a ser admissível, representaria pura e simplesmente um dever de autoincriminação e, como tal, o oposto do direito à não autoincriminação constitucionalmente garantido. No limite, a Administração fiscal, sob a veste de inspeção, poderia forçar o contribuinte a entregar-lhe toda a prova documental necessária para que a mesma Administração, agora sob a veste de autoridade e órgão de polícia criminal, pudesse levar ao inquérito e justificar materialmente a dedução pelo Ministério Público de uma acusação criminal contra o contribuinte.    

A colaboração exigível ao suspeito ou arguido num processo penal está limitada às diligências de prova admissíveis no quadro legal desse mesmo processo; no mais, a acusação tem de ser construída sem recurso a provas obtidas, com desrespeito da sua vontade, através da coação ou de meios de coerção utilizados contra aquele. De outro modo, fica comprometida a sua participação esclarecida, livre e autorresponsável no processo e, consequentemente, prejudicada a sua posição enquanto sujeito (processual) capaz de se autodeterminar na condução da sua defesa (cfr. supra o n.º 10).

Acresce a todas as considerações anteriores que o sacrifício do direito fundamental à não autoincriminação no domínio do processo penal tributário, mesmo considerando que apenas está em causa uma zona periférica do seu âmbito de proteção (os documentos fiscalmente relevantes), não se mostra suficientemente justificado pelos interesses que relevam da garantia das funcionalidades próprias do sistema fiscal e do cumprimento da lei fiscal na fase sancionatória.

Em primeiro lugar, porque os documentos obtidos na sequência das inspeções realizadas já depois de instaurado o inquérito criminal podem e devem continuar a ser utilizados no procedimento tributário, designadamente para efeito de apuramento da situação tributária do contribuinte e de liquidação dos impostos que porventura se encontrem em falta.

Depois, porque a colaboração do contribuinte no âmbito da inspeção tributária não é absolutamente indispensável para fazer chegar ao processo penal tributário tais documentos, não se podendo falar em qualquer imunidade penal. Com efeito, o CPP prevê meios de obtenção de prova, como as buscas e as apreensões, que são idóneos para o efeito.

Verifica-se, por conseguinte, uma relação desequilibrada entre os custos e os benefícios da restrição em análise, uma vez que inexiste uma articulação racional suficiente entre os custos ou desvantagens a suportar pelo titular do direito o contribuinte, suspeito ou arguido e os benefícios ou vantagens que a mesma permite alcançar para o interesse público. Por isso, tal restrição do direito à não autoincriminação ínsito no princípio nemo tenetur se ipsum accusare mostra-se desproporcionada e, como tal, constitucionalmente ilegítima.

 

18. Finalmente, importa fazer uma referência ao argumento utilizado pelo tribunal a quo segundo o qual os documentos fiscalmente relevantes estão fora do âmbito de proteção do princípio nemo tenetur se ipsum accusare, atenta a circunstância de não revestirem caráter autoincriminatório: «os elementos probatórios a que a recorrente alude foram obtidos independentemente da vontade dos aqui arguidos, não tendo sido por eles elaborados para o efeito, e, como tal, não colhe a argumentação aduzida em redor da prerrogativa à não autoincriminação» (cf. fls. 1744, v.º).

Este argumento parece ecoar a fórmula constante do Acórdão Saunders, cit., § 69, segundo a qual o direito à não autoincriminação não abrange a utilização em processo penal de elementos de prova que possam ser obtidos do acusado através do exercício de poderes coercivos, contanto que a existência de tais elementos seja independente da vontade do arguido, tais como documentos apreendidos em buscas, amostras de sangue ou de urina e tecidos corporais para testes de ADN.

Porém, como o próprio TEDH assinalou, desde logo no Acórdão Jalloh, cit., § 113 (referente precisamente à obtenção de prova material, com uma existência independente da vontade do suspeito), há que dar relevo ao desrespeito da vontade do acusado e à utilização deste como fonte de elementos de prova de uma infração por si cometida. Foi o que sucedeu, por exemplo, nos casos Funke (§ 44: recusa de entrega de extratos de contas bancárias) e J.B. c. Suíça (§§ 66 e 68: recusa entrega de documentos referentes a empresas). Ou seja, a obtenção coerciva de prova documental através da colaboração ativa do acusado, no sentido material e específico que lhe é dado pelo TEDH (cf. supra o n.º 12), ainda que se trate de documentos preexistentes ou pré-constituídos e que, portanto, não careçam de ser produzidos na sequência da intimação ou por causa dela, também se inclui no âmbito de proteção do direito à não autoincriminação.

Em qualquer caso, e conforme referido anteriormente (cfr. supra os n.ºs 10 e 11), o âmbito de proteção do nemo tenetur deve ser determinado em função da sua teleologia, que não depende da natureza dos meios de prova, mas da necessidade de salvaguardar a autodeterminação do arguido na condução da defesa face à acusação da prática de uma infração.

 

III. Decisão

Nestes termos, decide-se:

a) Julgar inconstitucional, por violação do princípio nemo tenetur se ipsum accusare, ínsito no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República portuguesa, a interpretação normativa dos artigos 61.º, n.º 1, alínea d), 125.º e 126.º, n.º 2, alínea a), todos do Código de Processo Penal, segundo a qual os documentos fiscalmente relevantes obtidos ao abrigo do dever de cooperação previsto no artigo 9.º, n.º 1, do Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária e Aduaneira e no artigo 59.º, n.º 4, da Lei Geral Tributária por uma inspeção tributária realizada a um contribuinte, durante a fase de inquérito de um processo criminal pela prática de crime fiscal movido contra o contribuinte inspecionado e sem o prévio conhecimento ou decisão da autoridade judiciária competente, podem ser utilizados como prova no mesmo processo;

E, em consequência,

b) Conceder provimento ao recurso e determinar a reforma da decisão recorrida de acordo com o precedente juízo de inconstitucionalidade.

Sem custas.

 

 

 

Lisboa, 15 de maio de 2019 - Pedro Machete - Mariana Canotilho - Fernando Vaz Ventura - Maria Clara Sottomayor (vencida de acordo com a declaração que junto) - Manuel da Costa Andrade (com declaração)

 

DECLARAÇÃO DE VOTO

 

 

Voto vencida, quer na interpretação normativa a fiscalizar, quer na decisão quanto ao juízo de inconstitucionalidade proferido, pelas seguintes razões:

1. O objeto do presente recurso, tal como definido pelo Acórdão que fez vencimento, é a interpretação normativa dos artigos 61.º, n.º 1, alínea d), 125.º e 126.º, n.º 2, alínea a), todos do Código de Processo Penal, segundo a qual os documentos fiscalmente relevantes obtidos ao abrigo do dever de cooperação previsto no artigo 9.º, n.º 1, do Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária e Aduaneira e no artigo 59.º, n.º 4, da Lei Geral Tributária por uma inspeção tributária realizada a um contribuinte, durante a fase de inquérito de um processo criminal pela prática de crime fiscal movido contra o contribuinte inspecionado e sem o prévio conhecimento ou decisão da autoridade judiciária competente, podem ser utilizados como prova no mesmo processo».

Em primeiro lugar, deve notar-se que a interpretação normativa agora fiscalizada foi reconstruída pelo Tribunal Constitucional, no acórdão que fez vencimento, tendo sido acrescentado o preceito relativo aos métodos proibidos de prova o artigo 126.º, n.º 2, alínea a) do CPP ao arco legislativo, composto pelos artigos 61.º, n.º 1, alínea d) e 125.º, ambos do CPP, tal como tinha sido enunciado pelo Recorrente na alínea b) da resposta ao despacho do relator que o notificou para ao abrigo do artigo 75.º-A, n.ºs 1 e 2, da LTC, indicar a decisão recorrida, a norma a fiscalizar e o parâmetro constitucional violado. 

Tal como entende o MP, no seu parecer apresentado junto deste Tribunal, os elementos que permitiriam distinguir a interpretação normativa fiscalizada nestes autos, enunciada na questão de constitucionalidade colocada na citada alínea b) da resposta do recorrente (e a única que reunia requisitos de admissibilidade), e aquela que foi fiscalizada no Acórdão n.º 340/2013, são meramente fácticos, reportando-se ao momento da instauração do inquérito de um processo penal. Acrescente-se, ainda, que as referências feitas, na fundamentação do Acórdão que fez vencimento, à «deslealdade grave» e à «má fé» da inspeção tributária na recolha dos documentos são deduzidas do próprio sistema, que permite que a inspeção tributária funcione como órgão de polícia penal, mas não estão comprovadas no processo e assumem uma natureza meramente hipotética, tanto que nem foram incluídas na interpretação normativa construída pelo acórdão para o efeito de definição do objeto do recurso.  

A tese vencedora reconstruiu a interpretação normativa, de forma a abranger não exclusivamente o dever de entrega de documentos no âmbito de um procedimento de inspeção, mas a «utilização como prova em processo penal de documentos que foram facultados pelo suspeito ou já arguido ou obtidos pela Administração fiscal no decurso de uma inspeção em que o mesmo, na sua qualidade de contribuinte, se encontra sujeito a deveres de cooperação nos termos anteriormente referidos», num quadro em que a inspeção tributária funciona como entidade que reúne poderes de fiscalização administrativa e poderes de investigação criminal, e em que se presume assumir, no caso concreto, este duplo papel.

Diferentemente, entendo que o elemento decisivo para aferir do juízo de constitucionalidade da norma impugnada reside na circunstância de os documentos terem sido obtidos ao abrigo do dever de cooperação com a inspeção tributária, dentro da teleologia própria deste dever e da relevância constitucional dos fins servidos por tal atividade inspetiva, num quadro jurídico-constitucional em que o cumprimento das obrigação de pagar impostos é um meio essencial à realização das tarefas do Estado de Direito Social, à igualdade entre os contribuintes e à redistribuição dos rendimentos e da riqueza.

Considero, portanto, que as diferenças encontradas entre a interpretação normativa agora fiscalizada e aquela que foi fiscalizada no Acórdão n.º 340/2013, porque meramente fácticas e não normativas, não permitem um juízo de constitucionalidade diferenciado.

 

2. Por outro lado, e mesmo considerando como válida a interpretação normativa construída pelo Acórdão que fez vencimento, a minha posição seria também favorável a um juízo de não inconstitucionalidade da mesma. Pese embora o direito ao silêncio e à não auto-incriminação seja um princípio fundamental implícito, incluído nas garantias de defesa do arguido próprias do processo penal (artigo 32.º, n.º 1, da Constituição; Acórdãos n.ºs 695/95, 461/2011 e 340/2013), entendo que ele se reporta, por excelência, no seu núcleo fundamental, à oralidade processual, representando a entrega de documentos uma zona periférica do princípio, caraterizada como menos valiosa em termos axiológicos, porque se trata, no domínio do combate à evasão fiscal, de documentos que o contribuinte, de qualquer forma, tem o dever de fornecer à Administração Tributária, se atuar de acordo com a boa fé que lhe é exigível.

Não sendo o princípio do nemo tenetur se ipsum accusare um princípio absoluto, como reconhece a jurisprudência deste Tribunal, tal significa que pode sofrer restrições e ser objeto de juízos de ponderação em função da preponderância de outros valores constitucionalmente protegidos, dentro de determinadas circunstâncias e assumindo a aplicação do principio da proporcionalidade uma dimensão casuística. Isto mesmo tem sido admitido pela jurisprudência deste Tribunal, no próprio processo penal, em determinadas circunstâncias (v.g., a obrigatoriedade de realização de determinados exames ou diligências que exijam a colaboração do arguido) e no âmbito da regulação económica e social do Estado, como também reconhece o Acórdão que fez vencimento.

Ora, o combate à evasão fiscal tem de implicar, não só uma imposição de colaboração acrescida aos contribuintes, mas uma ampla margem aos tribunais na utilização dos meios de prova. A Constituição tem de ser vista como uma unidade e os recursos económicos que escapam aos cofres do Estado, por incumprimento da lei, deixam de poder ser aplicados em tarefas fundamentais do Estado em benefício da coletividade. No contexto do caso dos autos, em que está em causa uma pessoa coletiva que movimenta valores elevados e em que o perigo de evasão fiscal é também elevado, entendo ser constitucionalmente admissível a utilização de documentos fiscalmente relevantes como meio de prova, entregues à inspeção tributária, ao abrigo de um dever de cooperação, mesmo estando pendente inquérito de um processo crime. Em face dos bens jurídicos em causa no combate à evasão fiscal no domínio dos crimes fiscais, entendo que a restrição em causa, neste caso concreto, respeita o critério da proporcionalidade, porque é adequada, isto é, constitui um meio idóneo para a prossecução de interesses públicos merecedores de proteção constitucional, e necessária, correspondendo a um meio exigível para obter o fim da eficiência do sistema fiscal e da justa distribuição da riqueza, objetivo que não se mostra alcançável através de mecanismos alternativos, os quais se podem revestir de excessiva onerosidade para a administração tributária, quer pelo dispêndio de recursos e de tempo, quer pelo risco de ineficácia, face à complexidade das situações a que têm de responder os modernos sistemas fiscais.

Maria Clara Sottomayor

 

DECLARAÇÃO DE VOTO

 

Votei o acórdão por concordar inteiramente com a decisão: julgar inconstitucional a norma por violação do princípio nemo tenetur si ipsum accusare.  Segundo o qual, em processo penal, ninguém pode ser coercivamente obrigado a contribuir ativamente para a sua condenação.

Isto sem prejuízo de entender que este mesmo resultado final poderia e deveria alcançar-se no contexto de um outro paradigma de compreensão e conjugação dos dispositivos constitucionais pertinentes e aplicáveis. Um paradigma alternativo que reputo mais consistente doutrinalmente e mais ajustado normativamente. E, como tal, capaz de oferecer resposta à generalidade dos problemas emergentes nas áreas de concorrência, convergência e conflitualidade entre o direito tributário e o direito processual penal de étimo acusatório. Isto é, um paradigma que, para além de satisfazer integralmente os valores, os interesses e as reivindicações legítimas do direito tributário (tanto material-substantivo como adjetivo-procedimental), assegure ao mesmo tempo a satisfação irrestrita das exigências do privilege against self-incrimination.

Importa, nesta linha e em primeiro lugar, perspectivar o nemo tenetur como uma figura ou instituto do processo penal e operados os ajustamentos devidos, dos demais processos sancionatórios que em nada é tocado pelo cumprimento das obrigações de colaboração/verdade que o moderno direito tributário faz impender sobre o contribuinte. Não fazendo, a meu ver, sentido levar à balança da ponderação e da proporcionalidade os valores/interesses inerentes ao sistema tributário como contrapostos aos valores/interesses da justiça criminal mediatrizados pelo nemo tenetur. E a ditar, sendo caso disso, o recuo ou o sacrifício das exigências do nemo tenetur. Os problemas associados ao privilégio contra a auto-incriminação são problemas de índole exclusivamente processual-penal. Só se colocam quando, num segundo e ulterior momento, se opera uma mudança de fim. Isto é, quando os meios de prova obtidos no procedimento tributário à custa das obrigações tributárias de colaboração/verdade chegam ao processo penal e aí reivindicam a valoração como meios de prova. Provocando, como resposta, uma inultrapassável proibição de valoração, ditada precisamente pelo nemo tenetur. A haver ponderação aqui, ela só poderia ocorrer entre os valores/interesses servidos pelo nemo tenetur e outros (contra-)valores/interesses subjetivados por uma justiça criminal eficaz.

Em segundo lugar e em conformidade, é minha convicção que as relações de assincronia e arritmia que medeiam entre os cursos do processo penal e dos procedimentos tributários não têm que ditar uma resposta diferenciada às constelações típicas de que aqui curamos. E que o juízo de conformidade/desconformidade constitucional não tem de ser diferente consoante o processo penal corra à frente ou atrás do processo tributário.

Manuel da Costa Andrade