ACÓRDÃO Nº 786/2017
Processo n.º 996/2016
Plenário
Relator: Conselheiro Gonçalo de Almeida Ribeiro
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. O Provedor de Justiça requereu, ao abrigo do disposto na alínea d) do n.º 2 do artigo 281.º da Constituição, a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas constantes da alínea b) do n.º 1 e dos n.ºs 3 e 4 — quanto a este último, no segmento em que remete para aquelas — do artigo 41.º do Decreto-Lei n.º 503/99, de 20 de novembro (Regime Jurídico dos Acidentes em Serviço e das Doenças Profissionais no Âmbito da Administração Pública), na redação dada pelo artigo 6.º da Lei n.º 11/2014, de 6 de março, com fundamento na violação, quer do direito dos trabalhadores a justa reparação, quando vítimas de acidente de trabalho ou de doença profissional, quer do princípio da igualdade, consagrados, respetivamente, na alínea f) do n.º 1 do artigo 59.º e no artigo 13.º da Constituição.
2. O pedido veio acompanhado da seguinte fundamentação:
«1.º
O Decreto-Lei n.º 503/99, de 20 de novembro, alterado por último pela Lei n.º 82-B/2014, de 31 de dezembro, contém «o regime jurídico dos acidentes de trabalho e das doenças profissionais ocorridos ao serviço de entidades empregadoras públicas» (artigo 1.º do diploma, na redação dada pela Lei n.º 59/2008, de 11 de setembro).
2.º
Conforme resulta explicitamente das respetivas considerações preambulares, o legislador quis acolher no citado Decreto-Lei, os princípios consagrados na lei geral em matéria de reparação dos danos emergentes de acidentes de trabalho e de doenças profissionais, adaptando-os às especificidades da Administração Pública.
3.º
À data, o regime geral dos acidentes de trabalho e das doenças profissionais encontrava-se vertido na Lei n.º 100/97, de 13 de setembro, e legislação complementar (veja-se a alínea a), do n.º 1, do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 503/99), diplomas entretanto revogados, na sequência da posterior codificação da legislação laboral.
4.º
A esta luz, entre os princípios que estruturaram, na sua matriz, o regime vertido no Decreto-Lei n.º 503/99, o legislador sinalizou, entre outros, a garantia, aos trabalhadores ao serviço da Administração Pública, «do direito às mesmas prestações, quer em espécie, quer de natureza pecuniária» (veja-se a alínea b) do ponto 4 das considerações preambulares daquele diploma).
5.º
Na esfera da relação de emprego público, anote-se, ainda, que tendo sobrevindo a Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (abreviadamente, LTFP, aprovada pela Lei n.º 35/2014, de 20 de junho, e alterada, por último, pela Lei n.º 18/2016, de 20 de junho), o legislador manteve aí a opção de remeter para diploma próprio «[o] regime de acidentes de trabalho e doenças profissionais dos trabalhadores que exercem funções públicas» (alínea b) do artigo 5.º da LTFP).
6.º
Neste horizonte, no direito vigente, a par do Decreto-Lei n.º 503/99, na sua redação atual, o regime dos acidentes de trabalho e das doenças profissionais consta essencialmente dos artigos 281.º a 284.º do Código do Trabalho (aprovado pela Lei n.º 7/2000, de 12 de fevereiro, e alterado, por último, pela Lei n.º 28/2016, de 23 de agosto) e respetiva regulamentação, vertida hoje, em matéria de reparação (incluindo a reabilitação e reintegração profissionais), na Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro (Lei dos Acidentes de Trabalho, de agora em diante, abreviadamente, LAT).
7.º
O Decreto-Lei n.º 503/99, ora visado, enformando o regime jurídico relativo ao infortúnio do trabalho ocorrido ao serviço de entidades empregadoras públicas – e deixando, por enquanto, em suspenso, a questão do desenho exato do seu âmbito subjetivo de aplicação (matéria sobre a qual nos debruçaremos com maior detalhe infra) – reconhece aos trabalhadores destinatários o «direito, independentemente do respetivo tempo de serviço, à reparação, em espécie e em dinheiro, dos danos resultantes de acidentes em serviço e de doenças profissionais», nos termos que o próprio diploma rege (n.º 1 do artigo 4.º; veja-se, ainda, o n.º 2 do mesmo preceito).
8.º
No que releva para as questões cuja bondade constitucional é aqui discutida, o direito à reparação em dinheiro compreende, entre outros, a «[i]ndemnização em capital ou pensão vitalícia correspondente à redução na capacidade de trabalho ou de ganho, no caso de incapacidade permanente», bem como a «[p]ensão aos familiares, no caso de morte» (respetivamente, alíneas b) e g) do n.º 4, do artigo 4.º do Decreto- Lei n.º 503/99).
9.º
Para efeitos de aplicação do mesmo Decreto-Lei, considera-se incapacidade permanente parcial «a situação que se traduz numa desvalorização permanente do trabalhador, que implica uma redução definitiva na respetiva capacidade geral de ganho», e incapacidade permanente absoluta «a situação que se traduz na impossibilidade permanente do trabalhador para o exercício das suas funções habituais ou de todo e qualquer trabalho» (vejam-se as alíneas l) e m), do n.º 1, do artigo 3.º daquele diploma).
10.º
Observe-se, ainda, com Carlos Alegre, versando sobre as prestações por incapacidade no quadro da pretérita Lei n.º 100/97, a saber, as pensões, respeitantes a incapacidades permanentes, e as indemnizações, correspondendo a situações de incapacidade temporária (in Acidentes de trabalho e doenças profissionais: Regime jurídico anotado, 2.ª ed., Coimbra, Almedina, 2009, p. 99):
«No sentido que aqui interessa, a pensão é uma renda anual, paga vitaliciamente, periodicamente, em regime de duodécimos. A lei dos acidentes de trabalho distingue as pensões das indemnizações, exatamente porque estas últimas não têm caráter vitalício, pagas unitariamente, embora, em muitos casos, possam set pagas periodicamente. Ambas têm em vista satisfazer os prejuízos resultantes de um dano físico, mas as pensões de forma vitalícia ou permanente e as indemnizações de forma pontual».
11.º
Acresce que, nas situações de incapacidade permanente ou morte, o legislador cometeu a responsabilidade pela avaliação e reparação à Caixa Geral de Aposentações, I.P. (CGA, I.P.). Veja-se o n.º 3 do artigo 5.º, bem corno as normas constantes do Capítulo IV do Decreto-Lei n.º 503/99.
12.º
É justamente inserido, na sistemática do diploma, no Capítulo IV acabado de mencionar, que se desvela o artigo 41.º, congregando as regras de acumulação de prestações – cerne da nossa atenção – e cujo teor aqui se transcreve na íntegra:
«Artigo 41.º
Acumulação de prestações
1 – As prestações periódicas por incapacidade permanente não são acumuláveis:
a) Com remuneração correspondente ao exercício da mesma atividade, em caso de incapacidade permanente absoluta resultante de acidente ou doença profissional;
b) Com a parcela da remuneração correspondente à percentagem de redução permanente da capacidade geral de ganho do trabalhador, em caso de incapacidade permanente parcial resultante de acidente ou doença profissional;
c) Com remuneração correspondente a atividade exercida em condições de exposição ao mesmo risco, sempre que esta possa contribuir para o aumento de incapacidade já adquirida.
2 – O incumprimento do disposto no número anterior determina a perda das prestações periódicas correspondentes ao período do exercício da atividade, sem prejuízo de revisão do grau de incapacidade nos termos do presente diploma.
3 – São acumuláveis, sem prejuízo das regras de acumulação próprias dos respetivos regimes de proteção social obrigatórios, as prestações periódicas por incapacidade permanente com a pensão de aposentação ou de reforma e pensão por morte com a pensão de sobrevivência, na parte em que estas excedam aquelas.
4 – O disposto nos números anteriores aplica-se, com as necessárias adaptações, às indemnizações em capital, cujo fica limitado à parcela da prestação periódica a remir que houvesse de ser paga de acordo com as regras de acumulação do presente artigo.»
13.º
As normas cuja bondade constitucional se questiona constam, conforme inicialmente antecipado e demarcado, da alínea b), do n.º 1, bem como dos n.ºs 3 e 4, quanto a este último, na parte m que remete para aquelas, todos do citado artigo 41.º, e resultam da alteração ao Decreto-Lei n.º 503/99 materializada peia Lei n.º 11/2014, de 6 de março.
I. Da violação do direito de justa reparação por acidente de trabalho ou doença profissional
14.º
Principiando pelas regras de acumulação de prestações periódicas por incapacidade permanente com remuneração, em virtude da nova so1uço normativa vertida na alínea b), do n.º 1, do artigo 41.º, em caso de incapacidade permanente parcial resultante de acidente de trabalho ou de doença profissional, a prestação periódica a que o trabalhador sinistrado ou afetado tem legalmente direito (i.e. a pensão vitalícia pela incapacidade permanente em questão) não é acumulável com a parcela da remuneração correspondente à percentagem de redução permanente da capacidade geral de ganho do trabalhador, significando que fica suspensa, ou, de outro modo perspetivado, se anula na remuneração que a vítima aufere pelas funções que continua a exercer.
15.º
Interrompendo-se o abono da pensão vitalícia ante a parcela remuneratória correspondente que o trabalhador com incapacidade permanente parcial recebe como contrapartida do seu trabalho, tal significa que, em verdade, não há lugar a reparação pecuniária, per se e efetiva, do dano laboral sofrido e que é indemnizável à luz da lei, no quadro de uma responsabilidade com caráter objetivo.
16.º
Ora, o dano em questão afere-se em função do seu resultado – vale por dizer: da consequência da lesão corporal, perturbação funcional ou doença relevantes para efeitos da aplicação do regime jurídico dos acidentes de trabalho e das doenças profissionais –, a saber, no caso de incapacidade permanente, a «redução na capacidade de trabalho ou de ganho» (veja-se, uma vez mais, a alínea b), do n.º 4, do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 503/99).
17.º
Para a interpretação destes conceitos, vale a pena atentar novamente no que escreve Carlos Alegre (in ob cit., p. 40):
«Utilizámos a expressão incapacidade para trabalhar, mas fizemos notar que a lei refere capacidade de trabalho ou de ganho. Serão as duas palavras, usadas nesta última expressão, ligadas pela disjuntiva, sinónimas entre si e sinónimas com a capacidade para trabalhar?
Capacidade para trabalhar e capacidade de trabalho constituem, efetivamente, a mesma realidade onde não se vislumbram diferenças, pelo que será indiferente utilizar uma ou outra expressão.
Mas já a capacidade de ganho pode não traduzir uma realidade semelhante à capacidade de trabalho.
Regra geral, estas duas expressões serão, na prática, mesmo sinónimas, uma vez que para o trabalhador por conta de outrem, o ganho resulta do traba1ho; isto é, o ganho constitui, normalmente, a retribuição única do trabalho, de tal modo que, se o trabalhador não trabalha não recebe retribuição ou se não trabalha de acordo com o que deveria ser a sua capacidade normal só será retribuído na respetiva proporção.
Podem conceber-se, porém, situações em que o trabalhador, vendo afetada ou reduzida a sua capacidade de trabalho não é afetado ou reduzido na sua capacidade de ganho. Tais situações podem acontecer, por exemplo, quando exista um contrato de trabalho individual ou coletivo) ou um contrato de seguro que garanta o pagamento integral do salário ao trabalhador sinistrado e diminuído na sua capacidade para trabalhar. Todavia, a capacidade de ganho não tem que ver, apenas, com a retribuição, mas com outros aspetos importantes da vida do trabalhador, como a capacidade para progredir normalmente na carreira, para melhorar a sua formação profissional, para mudar de profissão, etc.. E, quanto a nós, neste sentido amplo que a expressão capacidade de ganho deve ser tomada e, portanto, plenamente equiparada à expressão capacidade de (ou para o) trabalho.» [realce em itálico, negrito no original]
18.º
Este sentido mais amplo de capacidade de ganho encontra eco igualmente na própria definição de incapacidade permanente parcial, tal constante da alínea l), do n.º 1, do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 503/99, anteriormente citada.
19.º
A qualificação da capacidade de ganho como geral, independente da capacidade para o trabalho, torna clara a distinção entre os dois conceitos: pode haver capacidade para trabalhar e redução da capacidade de ganho; por outro lado, esta última capacidade não se referindo, de modo estreito, às funções concretamente exercidas pelo trabalhador, antes traduz a potencialidade que o mesmo possui de obter rendimento através da sua atividade laboral.
20.º
Deste modo, a capacidade de ganho terá que necessariamente abranger os aspetos, referidos por Carlos Alegre, como a capacidade para evoluir profissionalmente, para adquirir nova formação e, mesmo, para mudar de profissão, em condições que poderiam ser remuneratoriamente mais favoráveis para o trabalhador.
21.º
A título ilustrativo, basta pensar na hipótese de um técnico superior jurista que sofre um acidente de trabalho, do qual resulta a amputação de um membro inferior. À partida, esta lesão não envolverá a incapacidade permanente absoluta, mesmo para o seu trabalho habitual, mas comportará naturalmente uma redução na sua capacidade geral de ganho: o próprio exercício profissional exigirá um esforço acrescido e a lesão sofrida condicionará, que as hipóteses de alteração de funções, quer mesmo, em certa medida, as perspetivas de evolução profissional (o trabalhador poderá ver, por exemplo, dificultado o exercício de outras funções, como as de inspeção, envolvendo a necessidade de deslocações frequentes).
22.º
Nesta situação hipotética, a aplicação da norma constante da alínea b), do n.º 1, do artigo 41.º do Decreto-Lei n.º 503/99, impedindo a acumulação da pensão a título de incapacidade permanente com a correspondente parcela da remuneração, tem por resultado que os efeitos da lesão sofrida pelo trabalhador na sua capacidade geral de ganho não serão objeto de qualquer reparação efetiva enquanto se mantiver em funções.
23.º
Capacidade gera1 de ganho que não tem a ver com a manutenção da remuneração auferida pelo trabalhador à data do acidente ou da doença, tanto mais que, nos termos do n.º 4 do artigo 23.º do Decreto-Lei n.º 503/99, as medidas aplicadas no regresso de trabalhador que sofra de incapacidade permanente que o impossibilite de exercer plenamente as suas anteriores funções não podem implicar redução da sua remuneração.
24.º
Semelhante resultado viola o direito fundamental à justa reparação, reconhecido a todos os trabalhadores, quando vítimas de acidente de trabalho ou de doença profissional, tal como foi incorporado, na sequência da revisão constitucional de 1997, na a1ínea f), do n.º 1, do artigo 59.º da Constituição da República Portuguesa, em alinhamento, aliás, com os instrumentos internacionais de direitos humanos (incluindo as dimensões de proteção firmadas sob a égide da Organização Internacional do Trabalho).
25.º
Determinando a Constituição da República Portuguesa que a reparação por danos provindos do infortúnio laboral, consubstanciados em lesão ou doença, há de ser justa, cuidou já o Tribunal Constitucional desta dimensão material fundante, nos termos seguintes (colhidos no seu acórdão n.º 433/2016):
«A ideia de justiça na reparação – retirada do próprio léxico da norma constitucional citada – comete o legislador na incumbência de facultar os melos necessários e adequados à efetivação desse direito dos trabalhadores com vista à reparação dos danos sofridos pelas vítimas de um acidente de trabalho, a qual se procura efetiva e verdadeiramente dirigida à superação ou, não sendo tal possível, compensação dos danos na saúde e na capacidade e aptidão dos trabalhadores para a vida ativa e, em particular, para a atividade laboral.»
26.º
Ora, à luz da referida dimensão material, o critério reparatório definido na lei, nas prestações periódicas por incapacidade permanente parcia1, por referência à redução na capacidade geral de ganho da vítima, exige que, na efetivação do correspondente direito fundamental do trabalhador — compreendido como um direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias (veja-se, na doutrina constitucional, J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4ª ed. rev., Coimbra Editora, 2007, p. 770, e, na jurisprudência do Tribunal Constitucional, o acórdão n.º 612/2008) – a reparação do dano não fique tolhida em uma compreensão estreita segundo a qual, subsistindo a remuneração do trabalhador vitima, se esvanece, na prática e na parcela correspondente, qualquer dano indemnizável.
27.º
A este propósito e decaindo no tempo, recorde-se que a questão de «o salário auferido por trabalhador que sofre de certo grau de incapacidade permanente para o trabalho [ser cumulável] com a indemnização, traduzida em qualquer espécie de prestação, que lhe foi concedida» (Carlos Alegre, ob. cit., p. 228) ficara já jurisprudencialmente estabilizada, em termos de princípios gerais, no quadro da vigência da legislação que precedera a Lei n.º 2127, de 3 de agosto de 1965 (Bases do regime jurídico dos acidentes de trabalho e doenças profissionais), originando, subsequentemente, soluções sob a forma de lei, que transitaram, no que ao regime geral tomado como referente pelo Decreto-Lei n.º 503/99 diz respeito, para o preceituado no artigo 36.º da Lei n.º 100/97, complementado com o disposto no artigo 46.º da Lei n.º 142/99, de 30 de abril (nesse exato sentido, veja-se Carlos Alegre, ibid., pp. 99, 1 66 e 228, levando-o, justamente, a sinalizar aí, entre outras, e neste âmbito, as seguintes características das pensões: «a) Dizem sempre respeito a incapacidades permanentes ou à morte sofrida pelo sinistrado (...); b) São fixadas em montantes anuais (...); c) Não podem ser suspensas ou reduzidas, mesmo que o sinistrado venha a auferir retribuição superior à que tinha antes do acidente, salvo em consequência da revisão prevista no artigo 25.º da Lei n.º 100/97 (artigo 46.º); d) são cumuláveis com quaisquer outras pensões (artigo 46.º); (...)»).
28.º
Em sintonia com o que antecede, a integridade da remuneração resulta também hoje patente na LAT, desde logo ao proibir-se que o empregador desconte «qualquer quantia na retribuição do trabalhador ao seu serviço a título de compensação pelos encargos resultantes do regime [ali] estabelecido (...), sendo nulos os acordos realizados com esse objetivo» (artigo 13.º).
29.º
Acresce que a LAT não contém qua1quer regra de impossibilidade de acumulação da pensão por incapacidade permanente parcial com a remuneração, fixando, ao invés, no n.º 1 do artigo 51.º, o princípio de que «[a] pensão por incapacidade permanente não pode ser suspensa ou reduzida mesmo que o sinistrado venha a auferir retribuição superior à que tinha antes do acidente, salvo em consequência de revisão da pensão», sendo certo, outrossim, que a revisão da pensão está dependente, justamente, da verificação de «uma modificação na capacidade de trabalho ou de ganho do sinistrado» e em que as causas de tal modificação se encontram tipificadas na lei (veja-se o artigo 70.º da LAT).
30.º
Por outro lado, contendo a LAT um regime comum para os acidentes de trabalho e doenças profissionais, sem prejuízo de algumas adaptações para estas (vejam-se o n.º 2 do artigo 1.º e o n.º 1 do artigo 97.º), as regras que limitam, no âmbito das doenças profissionais, a acumulação de pensão com rendimentos do trabalho respeitam, no que aqui releva, «a pensão por incapacidade permanente absoluta para todo e qualquer trabalho e a pensão por incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual, desde que, quanto a esta, a retribuição decorra do exercício do mesmo traba1ho ou atividade sujeita ao risco da doença profissional em relação à qual é pensionista» (alínea c) do artigo 136.º da LAT).
31.º
Neste horizonte e volvendo ao Decreto-Lei n.º 503/99, na sua redação atual, afigura-se evidente a dessintonia da norma constante da alínea b), do n.º 1, do artigo 41.º com as regras vertidas na LAT, tanto mais paradoxal quanto é certa a intenção explicitamente afirmada pelo legislador governamenta1, ao emanar aquele diploma, de assumir por referente o regime geral em matéria de reparação dos danos emergentes de acidentes de trabalho e de doenças profissionais.
32.º
Desiderato que materializou, no patamar normativo, designadamente no artigo 34.º do mesmo Decreto-Lei, preceito que, para além de remeter, no n.º 1, para o “regime geral” a definição das prestações devidas por incapacidade permanente ou morte resultantes de acidente ou doença profissional, determina, no n.º 4, que «[a]s pensões e outras prestações previstas no n.º 1 são atribuídas e pagas pela Caixa Geral de Aposentações, regulando-se pelo regime nele referido quanto às condições de atribuição, aos beneficiários, ao montante e à fruição».
33.º
Não se duvidando que, conforme o Tribunal Constitucional tem reiteradamente expressado, «o legislador dispõe de alguma margem de conformação na concretização do direito à justa reparação por acidentes de trabalho e doenças profissionais, consagrado no artigo 59.º, n.º 1, alínea f), da Lei Fundamental» (nestes exatos termos, no seu acórdão n.º 219/2012), não pode, contudo, o legislador exercitar essa liberdade conformadora em termos que desrespeitem a Constituição.
34.º
Ora, a solução que ficou vertida na alínea b), do n.º 1, do artigo 41.º do Decreto-Lei n.º 503/99 não observa o comando constitucional de justa reparação por motivo de acidente de trabalho ou doença profissional, violando o conteúdo essencial do direito fundamental em questão.
35.º
A proibição legal de cumular a pensão vitalícia por incapacidade permanente parcial com a correspondente parcela da remuneração que o trabalhador continua a auferir transmuta, na realidade, algo que sempre será, por definição, a contrapartida do trabalho prestado pelo trabalhador, acrescendo-lhe uma função substitutiva daquela prestação reparatória, impedindo a efetivação da reparação do dano sofrido pelo trabalhador em dado momento da sua vida em virtude de infortúnio laboral.
36.º
Semelhante visão, que perpassa a norma criticada, circunscreve a finalidade das prestações periódicas por incapacidade permanente a um mero subsídio de subsistência, a suspender sempre que o trabalhador vítima aufira correspondente parcela remuneratória (como contrapartida do trabalho que, não obstante a desvalorização resultante do acidente de trabalho sofrido ou a doença profissional de que padece, logra prosseguir prestar), obnubilando, em absoluto, o dano sofrido que é indemnizável, a despeito da ideia de justa reparação postulada na Lei Fundamental e, afinal também, de uma visão holística da pessoa humana (agora, concretamente, nas vestes de trabalhador) e da atenção dignidade constitucional de dimensões que tocam o seu projeto de vida profissional, desconsiderando, nomeadamente, a reparação da perda de perspetivas em termos de carreira, evolução ou valorização profissional, que é constitucionalmente devida.
37.º
A própria jurisprudência do Tribunal Constitucional corrobora esta dimensão abrangente quando, em aresto temporalmente próximo e tendo como referente o regime constante do Decreto-Lei n.º 352/2007, de 23 de outubro, relativo à Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, aí vislumbra «um regime autónomo, distinto do aplicável ao código civil, especificamente desenhado para o dano laboral que atinge a capacidade de ganho do trabalhador e também a pessoa» (acórdão n.º 526/2016).
38.º
Em suma, a opção do legislador, ao impedir a acumulação de pensão por incapacidade permanente parcial com a remuneração do trabalho, na parcela correspondente â percentagem de redução permanente da capacidade gera1 de ganho do trabalhador, tem por efeito a ausência de reparação do dano presente neste tipo de incapacidade.
39.º
Vale por dizer: atribuir uma pensão vitalícia por incapacidade permanente parcial e suspendê-la por força do disposto na alínea b), do n.º 1, do artigo 41.º do Decreto-Lei n.º 503/99 é eliminar a reparação a que se destina aquela pensão, colocando em causa a proteção adequada que é devida a todo o trabalhador sinistrado ou com doença profissional, independentemente do regime jurídico-laboral em que se integre, o que consubstancia uma violação do direito fundamental que a Constituição da República Portuguesa acolhe na alínea f), do n.º 1, do artigo 59.º.
40.º
A argumentação expendida, assente na centralidade de significado e autonomização do dano laboral (que pode acarretar a redução da capacidade de trabalho ou de ganho, senão mesmo a morte do trabalhador) e da tutela que, como tal, o infortúnio do trabalho merece do Direito, vale, mutatis mutandis, relativamente às normas constantes dos n.ºs 3 e 4 do artigo 41.º do Decreto-Lei n.º 503/99, nos termos que doravante se especificam.
41.º
Em relação ao disposto no n.º 3 do artigo 41.º e com a devida salvaguarda das regras de acumulação próprias dos respetivos regimes de proteção social obrigatórios, que aqui não nos ocupam, resulta do mesmo preceito que, na prática, as prestações periódicas por incapacidade permanente são deduzidas à pensão de aposentação ou de reforma (e a pensão por morte à pensão de sobrevivência).
42.º
Dito de um outro modo, na medida em que a pensão de aposentação ou de reforma de quem sofreu acidente de trabalho ou doença profissional exceda a respetiva pensão vitalícia por incapacidade permanente (e a pensão de sobrevivência exceda a pensão por morte), apenas é paga a diferença ao respetivo aposentado, reformado ou beneficiário(s), consoante os casos.
43.º
Deste jeito, anulando-se, nos termos referidos, a pensão vitalícia em caso de aposentação ou reforma do trabalhador vítima que se manteve na vida ativa (e a pensão por morte ante uma pensão de sobrevivência), o legislador desconsidera, em absoluto, que em causa estão prestações pecuniárias que têm um escopo indemnizatório específico – no sentido da separação da redução na capacidade de trabalho ou de ganho sofrida (ou, ainda, da morte do trabalhador) –, o qual não se confunde, por definição e princípio, com o escopo de proteção próprio das prestações sociais devidas nas situações de velhice (e viuvez), de resto em boa parte assentes em uma lógica contributiva.
44. °
Ilustrando com a pensão de aposentação ou de reforma por limite de idade, está em causa uma pensão por direito próprio, diretamente substitutiva de rendimentos do trabalho, é certo, porém, aferida em função do preenchimento de determinados pressupostos e com regras próprias e específicas de determinação do respetivo montante.
45.º
Para um sinistrado por acidente de trabalho ou afetado por doença profissional, que se manteve na vida ativa, não obstante um certo grau de incapacidade permanente, a situação de aposentação ou reforma por limite de idade apresenta-se, nas circunstâncias legalmente definidas no n.º 3 do artigo 41.º do Decreto-Lei n.º 503/99, como vicissitude extintiva, na prática, da pensão vitalícia a título de incapacidade permanente, esvanecendo-se, a partir desse momento, a dimensão de reparação do dano laboral, quando é certo que este consubstancia uma realidade perfeitamente autónoma (que atende, como realçado, à perda no patamar da capacidade para evoluir profissionalmente, adquirir nova formação, acumular cargos ou mudar de profissão) e distinta daquela que, por seu turno, fundamenta a atribuição da pensão de aposentação ou de reforma, nomeadamente por limite de idade.
46.º
No caso dos trabalhadores destinatários das normas em causa, são os mesmos duplamente prejudicados, porque enquanto se mantiverem em exercício de funções, com a respetiva remuneração, a sua pensão por incapacidade permanente é suspensa, e, uma vez aposentados ou reformados, o pagamento daquela subsume-se na pensão de aposentação ou reforma que a exceda.
47.º
Não assim na LAT, em que se determina explicitamente, em sede de regulamentação da reparação de acidentes de trabalho e sem outro condicionamento, que «[a] pensão por incapacidade permanente é cumulável com qualquer outra» (n.º 2 do artigo 51 .º da LAT), por um lado, e, por outro, que «[a] pensão por incapacidade permanente por doença profissional é acumulável com a pensão atribuída por invalidez ou velhice, no âmbito de regimes de proteção social obrigatória, sem prejuízo das regras de acumulação próprias destes regimes» (artigo 137.º da LAT).
48.º
Pelo exposto, por princípio, o critério legalmente determinado no n.º 3 do artigo 41.º do Decreto-Lei n.º 503/99, não observa, deste jeito, também a exigência de justa reparação afirmada constitucionalmente na alínea f), do n.º 1, do artigo 59.º da Lei Fundamental, violando o seu conteúdo essencial, senão mesmo eliminando na prática o direito a uma reparação efetiva da lesão ou doença no âmbito laboral.
49.º
De harmonia com tudo o que antecede e por identidade de razão, na medida em que, por força da remissão feita, na parte relevante, no n.º 4 do artigo 41.º do Decreto-Lei n.º 503/99, as soluções normativas constantes do n.º 1, alínea b), e do n.º 3 do mesmo preceito são aplicáveis, mutatis mutandis, às indemnizações em capital, cujo valor fica limitado à parcela da prestação periódica a remir que houvesse de ser paga de acordo com as regras de acumulação ali vertidas, padece a norma ora invocada, naquela parte, de idêntico vício material de inconstitucionalidade.
II. Da violação do princípio da igualdade
50.º
Além de violadoras do direito fundamental à justa reparação por acidente de traba1ho ou doença profissional, as soluções normativas objeto da presente iniciativa não se compatibilizam, outrossim, com o princípio da igualdade, «um dos principais eixos estruturantes do regime constitucional dos direitos fundamentais — um princípio estruturante do Estado de Direito democrático e do sistema constitucional da República Portuguesa», na expressão do acórdão n.º 526/2016 do Tribunal Constitucional.
51.º
A este propósito e recuperando agora a questão do recorte exato do âmbito subjetivo de aplicação do Decreto-Lei n.º 503/99, cujo testamento ficou inicialmente diferido, não se deixa de relevar aqui que a apresentação do objeto dos diplomas que regem, no nosso ordenamento jurídico, a reparação do infortúnio laboral parece sugerir um quadro simplista em que o Código de Trabalho e a LAT se aplicam aos acidentes de trabalho e doenças profissionais ocorridos no âmbito de uma relação de trabalho regulada por aquele Código, enquanto o Decreto-Lei n.º 503/99 regula a mesma matéria no âmbito das relações de trabalho em funções públicas.
52.º
Assim sucedia, com efeito, na redação originária do Decreto-Lei n.º 503/99, em que se determinava, no artigo 2.º, a aplicação deste regime aos trabalhadores com qualidade de subscritor da CGA, I.P., exercendo «funções na administração central, local e regional, incluindo os institutos públicos nas modalidades de serviços personalizados e de fundos públicos e ainda nos serviços e organismos que estejam na dependência orgânica e funcional da Presidência da República e da Assembleia da República» (n.º 1). Em consonância, excluíam-se os trabalhadores dos mesmos serviços vinculados por contrato individual de trabalho e enquadrados no regime geral de segurança social (n.º 2).
53.º
No entanto, a redação conferida ao mesmo preceito pela Lei n.º 59/2008, de 11 de setembro (diploma que aprovou o Regime do Contrato de Trabalho em Funções Públicas, posteriormente revogado pela LTFP), tornou necessário determinar o regime de reparação aplicável em função de fatores diferentes dos estabelecidos anteriormente.
54.º
Em síntese e à luz do direito vigente (não tendo sido, à data, emitida a regulamentação das eventualidades acidentes de trabalho e doenças profissionais no âmbito do regime de proteção social convergente; veja-se o n.º 2 do artigo 32.º da Lei n.º 4/2009, de 29 de janeiro, que define a proteção social dos trabalhadores que exercem funções públicas), o fator determinante deixou de ser a modalidade do vínculo laboral associada ao regime de proteção social aplicável, passando a relevar a natureza da entidade em que trabalhador exerça funções, em termos reforçados pelo n.º 4 do artigo 4.º da LTFP.
55.º
Independentemente da resposta que se dê às questões que a este propósito se podem levantar, o que se apresenta decisivo para efeitos da presente iniciativa é a existência de uma clara e – como facilmente se intui – iníqua diferenciação de regimes de reparação do infortúnio laboral, consoante os trabalhadores sinistrados ou afetados por doença profissional estejam sujeitos à lei geral (Código do Trabalho e LAT) ou à lei específica aplicável, lato sensu, aos trabalhadores que exerçam funções no setor público (Decreto-Lei n.º 503/99), bem como, dentro deste último círculo, consoante a natureza da entidade em que exercem funções.
56.º
Efetivamente, do anteriormente exposto resulta que são distintas, na matéria em debate e nos termos já delineados, as regras de acumulação de prestações contidas no regime do Código do Trabalho e da LAT, por um lado, e, por outro, no Decreto-Lei n.º 503/99, inexistindo motivo bastante e fundado racionalmente para a diferenciação de disciplina jurídica dos distintos círculos de trabalhadores em causa, com ablação, em dado universo subjetivo, do direito à justa reparação por acidente de trabalho ou doença profissional.
57.º
O que se afigura tanto mais grave quanto é certa a exigência de tratamento igual de todos os trabalhadores em matéria de reparação do infortúnio do trabalho, que se adensa, ademais, pelo reforçado critério de justiça que perpassa explicitamente, no texto constitucional, o direito à reparação do dano laboral.
58.º
A este respeito, recuperemos as considerações tecidas no acórdão n.º 546/2011 do Tribunal Constitucional, nos exatos termos em que foram igualmente consideradas ponderosas para efeitos da declaração da inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, de segmento normativo contido no n.º 2 do artigo 75.º da LAT, por força do acórdão n.º 172/2014:
«é (…) ponto assente que o n.º 1 do artigo 13.º da CRP, ao submeter os atos do poder legislativo à observância do princípio da igualdade, pode implicar a proibição de sistemas legais internamente incongruentes, porque integrantes de soluções normativas entre si desarmónicas ou incoerentes. Ponto é, no entanto (...) que o caráter incongruente das escolhas do legislador se repercuta na conformação desigual de certas situações jurídico-subjetivas, sem que para a medida de desigualdade seja achada uma certa e determinada razão. E que não cabe ao juiz constitucional garantir que as leis se mostrem, pelo seu conteúdo, racionais. O que lhe cabe é apenas impedir que elas estabeleçam regimes desrazoáveis, isto é, disciplinas jurídicas que diferenciem pessoas e situações que mereçam tratamento igual ou, inversamente, que igualizem pessoas e situações que mereçam tratamento diferente. Só quando for negativo o teste do merecimento – isto é, só quando se concluir que a diferença, ou igualização, entre pessoas e situações que o regime legal estabeleceu não é justificada por um qualquer motivo que se afigure compreensível face a ratio que o referido regime, em conformidade com os valores constitucionais, pretendeu prosseguir – é que pode o juiz constitucional censurar, por desrazoabilidade, as escolhas do legislador. Fora destas circunstâncias, e, nomeadamente, sempre que estiver em causa a simples verificação de uma menor racionalidade ou congruência interna de um sistema legal, que contudo se não repercuta no trato diverso – e desrazoavelmente diverso, no sentido acima exposto – de posições jurídico-subjetivas, não pode o Tribunal Constitucional emitir juízos de inconstitucionalidade. Nem através do princípio da igualdade (artigo 13.º) nem através do princípio mais vasto do Estado de direito, do qual em última análise decorre a ideia de igualdade perante lei e através da lei (artigo 2.º), pode a Constituição garantir que sejam sempre racionais ou congruentes as escolhas do legislador. No entanto, o que os dois princípios claramente proíbem é que subsistam na ordem jurídica regimes legais que impliquem, para as pessoas, diversidades de tratamento não fundados em motivos razoáveis.»
59.º
Na situação que nos ocupa e não obstante a indubitável aproximação ao direito comum que o quadro conformador da relação de emprego público vem há muito evidenciando, poderíamos, ainda assim, ser levados a aferir da razoabilidade da diferenciação de tratamento jurídico nas características próprias daquela relação.
60.º
Não se crê, todavia, que proceda a bondade de tal razão, porquanto, conforme anteriormente exposto, não é a modalidade de vinculação que distingue os dois regimes, mas a natureza da entidade no seio da qual as funções são prestadas, pelo que há trabalhadores em funções públicas submetidos, em matéria de acidentes de trabalho e doenças profissionais, ao Código do Trabalho e à LAT.
61.º
Não se revelam, na verdade, quaisquer especificidades da relação de emprego público que justifiquem desvios face ao regime aplicável à generalidade dos trabalhadores por conta de outrem, no quadro da LAT.
62.º
Deste modo, estando em causa uma diferenciação de regimes, sem motivo bastante, que não acautela, para um determinado universo de trabalhadores em funções públicas, dimensão subjetiva nuclear, compreendida no âmbito de proteção do direito fundamental a justa reparação do dano laboral, deve concluir-se pela desrazoabilidade das opções do legislador vertidas nas normas constantes do n.º 1, alínea b), bem como dos n.ºs 3 e 4, quanto a este último, na parte em que remete para aquelas normas, todos do artigo 41.º do Decreto-Lei n.º 503/99.
63.º
Razão pela qual se considera que as normas em questão violam, outrossim, o princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa.»
3. Notificado para se pronunciar sobre o pedido, nos termos do artigo 54.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei do Tribunal Constitucional, referida adiante pela sigla «LTC»), veio o Presidente da Assembleia da República oferecer o merecimento dos autos, fazendo acompanhar a sua resposta de uma nota técnica sobre os trabalhos preparatórios do diploma de que constam as normas sindicadas pelo requerente.
4. Tendo sido discutido em Plenário o memorando apresentado pelo Presidente do Tribunal Constitucional, e tendo sido fixada a orientação do Tribunal sobre as questões a resolver no âmbito do presente processo — tudo nos termos previstos no artigo 63.º da LTC —, cabe agora decidir em conformidade com o que então se deliberou.
II - Fundamentação
5. As normas sindicadas pelo requerente integram o artigo 41.º do Regime Jurídico dos Acidentes em Serviço e das Doenças Profissionais no Âmbito da Administração Pública (referido adiante pela sigla «RAS»), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 503/99, de 20 de novembro, na redação dada pelo artigo 6.º da Lei n.º 11/2014, de 6 de março. Nele se contém o regime de acumulação de prestações periódicas por incapacidade permanente com outras prestações pecuniárias recebidas pelos trabalhadores em funções públicas — com a exclusão dos abrangidos pelo n.º 4 do artigo 2.º do diploma — vitimados por infortúnio laboral.
Na versão anterior à que resultou da alteração legislativa promovida através da Lei n.º 11/2014, o artigo 41.º do RAS tinha a seguinte redação:
Artigo 41.º |
1 - As prestações periódicas por
incapacidade permanente não são acumuláveis: |
Após a referida alteração legislativa, o teor do artigo 41.º do RAS passou a ser o seguinte:
Artigo 41.º |
1 - As prestações periódicas por incapacidade permanente não são acumuláveis:
a) Com remuneração correspondente ao
exercício da mesma atividade, em caso de incapacidade permanente absoluta
resultante de acidente ou doença profissional;
b) Com a parcela da remuneração correspondente à percentagem de redução
permanente da capacidade geral de ganho do trabalhador, em caso de incapacidade
permanente parcial resultante de acidente ou doença profissional;
c) Com remuneração correspondente a atividade exercida em condições de
exposição ao mesmo risco, sempre que esta possa contribuir para o aumento de
incapacidade já adquirida.
2 - O incumprimento do disposto no número
anterior determina a perda das prestações periódicas correspondentes ao período
do exercício da atividade, sem prejuízo de revisão do grau de incapacidade nos
termos do presente diploma.
3 - São acumuláveis, sem prejuízo das regras de acumulação próprias dos
respetivos regimes de proteção social obrigatórios, as prestações periódicas
por incapacidade permanente com a pensão de aposentação ou de reforma e a
pensão por morte com a pensão de sobrevivência, na parte em que estas excedam
aquelas.
4 - O disposto nos números anteriores aplica-se, com as necessárias adaptações,
às indemnizações em capital, cujo valor fica limitado à parcela da prestação
periódica a remir que houvesse de ser paga de acordo com as regras de
acumulação do presente artigo.
Como resulta da comparação entre as duas redações, a Lei n.º 11/2014, de 6 de março, alargou o domínio das proibições de acumulação. Na versão antiga, o artigo 41.º do RAS proibia a acumulação da pensão periódica por incapacidade permanente de trabalho com a remuneração pelo exercício da atividade profissional no âmbito da qual ocorreu o infortúnio laboral, no caso de ser absoluta a incapacidade, ou em condições de exposição ao mesmo risco, sempre que este possa contribuir para agravar a incapacidade adquirida. Por outro lado, a lei permitia, expressamente, quer a acumulação da pensão por incapacidade permanente com as pensões de invalidez e de velhice, quer a acumulação da pensão por morte com a pensão de sobrevivência, na parte em que esta excedesse aquela.
Na sua versão atual, o artigo 41.º acrescenta, às proibições de acumulação anteriores, a proibição de acumulação da pensão por incapacidade permanente parcial — definida como uma «situação que se traduz numa desvalorização permanente do trabalhador, que implica uma redução definitiva na respetiva capacidade geral de ganho» (artigo 3.º, n.º 1, alínea l), do RAS) — com a parcela da remuneração correspondente à redução permanente da capacidade de ganho e apenas permite a acumulação da pensão por incapacidade permanente com a pensão de aposentação ou reforma na parte em que esta excede aquela, uma solução idêntica àquela que a versão antiga do diploma já acolhia no que dizia respeito à acumulação da pensão por morte com a pensão de sobrevivência. Estas proibições de acumulação estendem-se aos casos em que o sinistrado recebe uma indemnização em capital em remição das prestações periódicas devidas pela sua incapacidade.
No domínio da vigência da lei antiga, um trabalhador em funções públicas que tenha adquirido uma incapacidade permanente parcial em virtude de acidente de trabalho — incapacidade essa que se expressa através de um coeficiente ou percentagem de capacidade de trabalho definitivamente perdida — pode acumular a pensão (ou, quando for esse o caso, a indemnização em capital) por incapacidade com a remuneração correspondente ao trabalho para a qual ficou incapacitado ou com a totalidade da pensão de aposentação. No domínio da vigência da lei nova, pelo contrário, um trabalhador vitimado por infortúnio laboral não pode acumular a pensão por incapacidade (ou a indemnização em capital) com a parcela correspondente da retribuição auferida no momento da ocorrência do acidente ou do diagnóstico da doença, nem a pensão por incapacidade com a pensão de aposentação, salvo na medida em que esta exceder o valor daquela.
É útil pôr estas diferenças em evidência através de uma ilustração aritmética. Tome-se o exemplo de um trabalhador da Administração Pública que aufere uma retribuição de 3.000 euros mensais e que adquire uma incapacidade permanente de 50% causada por infortúnio laboral. Nos termos do artigo 48.º, n.º 3, alínea c), do Regime de Reparação de Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais — aprovado pela Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro (referido adiante pela sigla «RAT») —, aplicável aos acidentes em serviço da Administração Pública, ex vi do disposto no artigo 34.º, n.º 1, do RAS, a pensão por incapacidade permanente parcial é calculada com base na seguinte fórmula: 0,7 × (I.P.P. × Retribuição). No exemplo dado, a pensão por incapacidade será fixada no montante de 0,7 × (0,5 × 3.000) = 1.050 euros mensais. O trabalhador incapacitado tem ainda o direito, nos termos do artigo 23.º, n.º 4, do RAS — disposição que existe desde a versão originária do diploma —, a manter a totalidade da sua retribuição. Nos termos do regime antigo, o trabalhador em causa, podendo acumular a retribuição integral com a pensão por incapacidade, recebe 3.000 + 1.050 = 4.050 euros em prestações periódicas; o mesmo trabalhador, quando se aposentar, receberá a pensão por incapacidade e a totalidade da pensão de aposentação, sendo esta calculada com base numa carreira contributiva intocada — em virtude da intangibilidade da retribuição — pelo infortúnio laboral. Nos termos do regime atual, o trabalhador recebe apenas a sua retribuição — 3.000 euros — e, uma vez aposentado, receberá apenas a parcela da pensão de aposentação que exceder o valor da pensão por incapacidade.
Ora, são precisamente estas modificações no regime de acumulação de prestações periódicas que o requerente impugna no seu pedido. No seu entender, a proibição de acumulação da pensão por incapacidade permanente parcial com a totalidade da retribuição ou da pensão de aposentação é inconstitucional, por duas ordens de razão:
(i) Em primeiro lugar, por violar o direito fundamental dos trabalhadores (neste caso, em funções públicas) a justa reparação, quando vítimas de acidente de trabalho. Ao impedir a acumulação integral da pensão por incapacidade com a retribuição e com a pensão de aposentação, a lei confunde as diversas causas ou funções destas prestações, assimilando a reparação do dano laboral, quer à remuneração do trabalho prestado à entidade empregadora, quer à proteção social na velhice baseada, fundamentalmente, nas contribuições prestadas ao longo da vida ativa. Por outras palavras, a lei oblitera — entende o requerente — «a reparação do dano sofrido pelo trabalhador em dado momento da sua vida em virtude de infortúnio laboral».
(ii) Em segundo lugar, por violar o princípio da igualdade, na medida em que o RAT, aplicável aos trabalhadores sujeitos ao regime comum, não contém as proibições de acumulação que a Lei n.º 11/2014, de 6 de março, introduziu no RAS. Com efeito, nos termos do n.º 1 do artigo 51.º do RAT «[a] pensão por incapacidade permanente não pode ser suspensa ou reduzida mesmo que o sinistrado venha a auferir retribuição superior à que tinha antes do acidente, salvo em consequência de revisão da pensão.» E no que respeita à acumulação da pensão por incapacidade com a de aposentação, vale o n.º 2 do mesmo artigo, o qual dispõe que a «pensão por incapacidade permanente é cumulável com qualquer outra.» Daí decorre — segundo o requerente — que os trabalhadores sujeitos ao RAS são arbitrariamente prejudicados relativamente aos seus homólogos abrangidos pelo regime comum.
Embora distintas do ponto de vista dogmático — por se reconduzirem a parâmetros constitucionais de conteúdo e de natureza diversos —, as questões colocadas pelo requerente estão intimamente relacionadas, de tal modo que constituem, no essencial, duas dimensões ou vertentes do mesmo problema, qual seja o de saber se a justa reparação por infortúnio laboral — consagrada no artigo 59.º, n.º 1, alínea f), da Constituição, e concretizada, paradigmaticamente, no regime comum dos acidentes de trabalho e doenças profissionais, aprovado pela Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro — não implica a permissão legal da acumulação entre a pensão por incapacidade e a totalidade da remuneração do trabalho ou da pensão de aposentação.
Para responder a tal questão, é necessário determinar o conteúdo do direito fundamental à justa reparação por infortúnio laboral.
6. O direito dos trabalhadores à «assistência e justa reparação, quando vítimas de acidente de trabalho ou de doença profissional» foi consagrado no artigo 59.º, n.º 1, alínea f), após a revisão constitucional de 1997 (artigo 33.º, n.º 3, da Lei Constitucional n.º 1/97, de 20 de setembro). Trata-se de um dos direitos fundamentais dos trabalhadores elencados no artigo 59.º da Constituição, no Capítulo relativo aos direitos e deveres económicos.
São titulares destes direitos — designadamente o aqui em causa — não apenas os trabalhadores ao serviço de entidades empregadoras privadas, mas também aqueles que exercem funções públicas. De resto, terá sido a importância de evitar a controvérsia a esse respeito um dos propósitos da substituição, operada pela revisão constitucional de 1989, no corpo do artigo 269.º da Constituição (sob a epígrafe, «Regime da Função Pública»), da expressão «funcionários e agentes do Estado e das demais entidades públicas» — uma nomenclatura com pergaminhos na cultura jurídica e administrativa portuguesa —, pela expressão «trabalhadores da Administração Pública». Sem prejuízo da diversidade entre o emprego privado e o público, é inequívoco que, no direito constitucional português, os direitos fundamentais dos trabalhadores se estendem ao universo do que tradicionalmente se denominava «função pública».
Para efeitos do presente processo, importa salientar duas características do direito consagrado no artigo 59.º, n.º 1, alínea f), da Constituição.
A primeira característica é a natureza normativa do objeto, que se prende com o facto de o direito em causa incidir, primariamente, sobre um bem constituído por normas legais. Com efeito, o direito à assistência e justa reparação em caso de infortúnio laboral integra a classe dos direitos fundamentais a prestações normativas, ou seja, a que o legislador institua regimes jurídicos constitutivos de determinados bens, direitos que se traduzem, em primeira linha, num dever de ação legislativa do Estado. Em virtude dele, «[o Estado] está vinculado a prever, por via legislativa, a obrigação de reparação e a assistência…por parte da entidade patronal (ou de outra entidade que se lhe substitua)….» (Acórdão n.º 599/2004). Trata-se, por natureza, de um direito de pendor positivo, correlativo de um dever estadual de legislar.
A segunda característica é a ressonância histórica do conteúdo, que releva da circunstância de a revisão constitucional de 1997 ter consagrado um direito há muito protegido pela legislação laboral portuguesa. Ao reconhecer expressamente tal direito, o legislador de revisão teve por principal desiderato impedir o legislador ordinário, no exercício da sua liberdade democrática de autorrevisão, de subverter um instituto jurídico-laboral que tutela interesses com dignidade constitucional. Tal não significa que a Constituição prive o legislador ordinário de toda a liberdade de conformação política nesta matéria; o que se tornou explicitamente indisponível é a função de assistência e de reparação do trabalhador que a legislação vigente em matéria de infortúnio laboral vinha assegurando, sem prejuízo de relativa indiferença constitucional no que diz respeito aos meios e formas usadas para o efeito.
Desta dupla particularidade do direito à assistência e justa reparação por infortúnio laboral — objeto normativo e ressonância histórica —, decorre que, para densificar o seu conteúdo, é essencial compreender a função do instituto jurídico da assistência e reparação em caso de infortúnio laboral. Ora, tal instituto não é uma criação original e recente do legislador português. É um elemento destacado do património jurídico comum da generalidade dos sistemas que integram, quer a família dos direitos romano-germânicos, quer a da common law, e constitui uma figura emblemática da transformação do direito do trabalho ocorrida no contexto histórico da «questão social» emergente da Revolução Industrial. Daí que, para compreender o seu sentido, seja indispensável explicar, ainda que sumariamente, as suas origens e o seu desenvolvimento.
7. O instituto jurídico da reparação por infortúnio laboral surgiu da mesma forma que a generalidade dos institutos próprios do moderno direito do trabalho, através da segregação das relações laborais do domínio de aplicação do direito civil, entendido como direito privado comum, e a sua sujeição a regimes especiais calibrados em função das particularidades do trabalho subordinado (no mesmo sentido, v. o Acórdão n.º 150/2000). Na origem dos regimes de reparação do dano laboral esteve a tomada de consciência da insuficiente proteção dada ao trabalhador vítima de acidente de trabalho ou de doença profissional pelo regime da responsabilidade civil delitual, baseado no princípio de que o lesado suporta o dano — casum sentit dominus —, exceto se este for imputável a conduta culposa de terceiro.
No decurso do séc. XIX, assistiu-se a um enorme crescimento na frequência, intensidade e mediatização dos acidentes de trabalho nos países industrializados. Nas fábricas, nos caminhos de ferro, nos barcos-a-vapor e nas minas de carvão — os locais típicos da primeira encarnação histórica do trabalho industrial — era comum ocorrerem descarrilamentos, colisões, explosões, derrocadas, esmagamentos, incêndios e outros desastres que provocavam tipicamente a morte ou lesões corporais incapacitantes.
A reparação pelos danos sofridos, nos termos das regras gerais, revelava-se praticamente impossível, deparando com três grandes obstáculos. Em primeiro lugar, era necessário que o acidente se devesse a culpa de terceiro, quando normalmente se devia à periculosidade do trabalho industrial ou à própria negligência da vítima. Em segundo lugar, o lesado tinha de intentar uma ação judicial de responsabilidade civil, suportando os respetivos custos, observando os ónus probatórios e aguardando pacientemente o desenlace do processo. Finalmente, na eventualidade improvável de o pedido do autor vir a ser julgado procedente, o pagamento da indemnização dependia da solvência do réu, as mais das vezes um companheiro de trabalho sem património significativo, a cuja negligência se devia o acidente.
É certo que, em teoria, os trabalhadores podiam proteger-se do risco de acidente de trabalho ou de doença profissional através da exigência, junto da entidade patronal, de um prémio salarial destinado a adquirir seguros comerciais de acidentes de trabalho e de cuidados de saúde. Na realidade, porém, a insuficiência e assimetria de informação relativa ao perigo profissional, por um lado, e a natureza muito incipiente do mercado de seguros, por outro, deixavam o trabalhador oitocentista completamente exposto ao risco de infortúnio laboral. Privados de indemnização pelos danos sofridos, de proteção concedida por uma entidade seguradora e da retribuição devida pela colocação da sua força de trabalho no mercado, os sinistrados e os seus dependentes ficavam destituídos de meios de subsistência e entregues à caridade alheia. Os acidentes de trabalho tornavam-se, assim, uma das grandes questões sociais da era industrial.
Tiveram lugar na Alemanha as iniciativas pioneiras e modelares neste domínio. O primeiro impulso foi dado na Prússia, no segundo quartel do século XIX. Uma lei aprovada em 1838, aplicável aos caminhos de ferro (Gesetz über die Eisenbahn-Unternehmungen), que previa, no § 25, a responsabilidade objetiva do transportador pelos prejuízos causados aos passageiros e a «outras pessoas», foi interpretada pelo Supremo Tribunal Prussiano como impondo ao empregador o dever de indemnizar o maquinista por danos pessoais e patrimoniais emergentes do descarrilamento ou outros acidentes ferroviários, independentemente de culpa (v. os acórdãos de 25 de novembro de 1856, de 9 de dezembro de 1859 e de 16 de outubro de 1863, publicados no Archiv für Rechtsfälle aus der Praxis der Rechts-Anwälte des Königlichen Ober-Tribunals, disponível em https://books.google.pt, nos seguintes lugares: vol. 22, pp. 352 ss.; vol. 36, pp. 69 ss..; vol. 52, pp. 32 ss.).
Esta jurisprudência foi acolhida na lei de 1871 (Gesetz betreffend die Verbindlichkeit zum Schadenersatz für die bei dem Betriebe von Eisenbahnen, Bergwerken usw. Herbeigeführten Tödtungen und Körperverletzungen), que consagrou a responsabilidade objetiva das entidades patronais operadoras de caminhos de ferro e estendeu-a a todo o território germânico (entretanto unificado). O Supremo Tribunal Comercial interpretou o diploma no sentido de abolir a exceção da culpa do lesado e de tornar indemnizáveis os lucros cessantes, alargando a proteção do trabalhador ao máximo compaginável com a letra da lei (v. os acórdãos de 7 de maio de 1872 e de 10 de setembro de 1873, publicados em Entscheidungen des Reichs-Oberhandelsgerichts, disponível em https://books.google.pt, nos seguintes lugares: vol. 6, pp. 9 ss.; vol. 10, pp. 411 ss.).
Em 1884, foi dado o passo decisivo no sentido da plena institucionalização da reparação por acidentes de trabalho. O parlamento aprovou a proposta do chanceler Bismarck de criação de um seguro social de acidentes de trabalho, administrado pelo Estado e financiado através de contribuições dos empregadores, nos termos do qual o sinistrado, independentemente de culpa de terceiro e mesmo no caso de o acidente se dever a negligência da sua parte, adquiria o direito a receber uma pensão igual a uma fração (por regra, de dois terços) da parcela da retribuição, auferida na data do sinistro, correspondente ao coeficiente de incapacidade permanente que lhe fosse fixado por uma junta médica; nos casos de morte do trabalhador, a pensão era devida ao seu cônjuge. O seguro social de acidentes de trabalho de 1884 era complementado por um seguro social de prestação de cuidados de saúde, aprovado em 1883, através do qual o trabalhador vitimado por infortúnio laboral adquiria o direito a receber assistência e cuidados médicos. Acresceu-lhes, a partir de 1889, o seguro social de velhice e invalidez, o terceiro esteio do sistema alemão de segurança social.
Como contrapartida dos encargos com o financiamento destes seguros sociais, as entidades patronais beneficiavam de uma isenção de responsabilidade civil, nos termos da qual não podiam ser demandadas pelo sinistrado nos tribunais comuns; a lei previa apenas, em caso de dolo ou de culpa grave do empregador, a elevação do montante das pensões acima dos limites normais.
Na prática, o regime assentava numa transação de interesses. Do ponto de vista dos trabalhadores, o sacrifício da indemnização integral dos danos sofridos a que teriam direito nos termos das regras gerais justificava-se pela proteção muito mais extensa contra o risco de infortúnio laboral do que aquela que resultava da subsunção dos acidentes de trabalho no instituto da responsabilidade civil. Do ponto de vista dos empregadores, os custos do financiamento regular dos seguros sociais de acidentes de trabalho e de saúde eram compensados pela eliminação do risco de pagamento de indemnizações avultadas, nos casos em que a ação de responsabilidade civil fosse julgada procedente pelos tribunais comuns, dando lugar à liquidação de todos os danos patrimoniais e morais sofridos pelo lesado.
8. O sistema alemão de proteção social contra acidentes de trabalho e doenças profissionais manteve-se, nos seus aspetos essenciais, inalterado desde a sua génese até ao momento presente.
Entretanto, entre finais do século XIX e o início do século XX, a generalidade dos países industrializados adotaram sistemas mais ou menos inspirados no exemplo alemão. No Reino Unido, foi aprovado em 1897 o Workers’ Compensation Act, que permitia ao trabalhador vitimado por infortúnio laboral optar entre a pensão por incapacidade e a ação de responsabilidade civil. Em França, foi aprovada em 1898 a Loi sur les Responsabilités des Accidents dont les Ouvriers sont Victimes dans leur Travail, que estabelecia a obrigação de os empregadores pagarem ao trabalhador sinistrado uma reparação tarifada (forfaitaire), independentemente de culpa. Em Itália, também em 1898, foi aprovada a Legge 17 marzo 1898 n. 80, que instituiu a obrigatoriedade da celebração, pela entidade patronal, de seguro contra os infortúnios laborais sofridos pelos trabalhadores ao seu serviço. Nos Estados Unidos da América, a primeira lei de âmbito geral em matéria de acidentes de trabalho foi aprovada no Estado de Nova Iorque, em 1910, com a denominação An Act to Amend the Labor Law, in Relation to Workmen’s Compensation in Certain Dangerous Employments.
A tendência seguida na Europa, ao longo do século XX, foi a da convergência cada vez mais estreita em torno do arquétipo germânico, através da incorporação gradual da proteção contra acidentes de trabalho e doenças profissionais no âmbito da segurança social — nuns casos financiada através de contribuições e noutros através de receitas fiscais —, acentuando a demarcação da reparação por infortúnio laboral em relação ao instituto da responsabilidade civil. Nos Estados Unidos, pelo contrário, prevaleceu, na generalidade das jurisdições estaduais, um modelo em que a reparação, igualmente consubstanciada em assistência médica e prestações pecuniárias, é efetuada por entidades seguradoras contratadas para esse efeito pelos empregadores, ao abrigo de legislação que estabelece a obrigatoriedade de transferência da responsabilidade e determina o conteúdo do contrato através da imposição de uma apólice uniforme.
O sistema português de proteção em caso de infortúnio laboral compreende ambos os modelos, dado que os acidentes de trabalho têm um regime semelhante ao prevalecente nos Estados Unidos — transferência obrigatória da responsabilidade pela reparação para uma entidade seguradora (artigo 79.º, n.º 1, do RAT) —, ao passo que as doenças profissionais se integram no âmbito material do regime geral de segurança social dos trabalhadores (artigo 93.º, n.º 1, do RAT).
Em Portugal, o primeiro diploma em matéria de acidentes de trabalho foi aprovado em 1913 (Lei n.º 83, de 24 de julho de 1913), consagrando o direito dos «operários e empregados» a «assistência clínica, medicamentos e indemnizações» a cargo do empregador em caso de «acidente de trabalho, sucedido por ocasião do serviço profissional e em virtude desse serviço», independentemente de culpa; as indemnizações, reguladas nos artigos 5.º (para o caso de morte) e 6.º (para o caso de incapacidade), eram fixadas em percentagens da remuneração dada como perdida, em termos análogos aos da generalidade das legislações vigentes noutros países em matéria de infortúnio laboral. Entretanto, através do Decreto n.º 5637, de 10 de maio de 1919, foi imposta aos empregadores a obrigatoriedade de transferência da responsabilidade por acidentes de trabalho e doenças profissionais para uma entidade seguradora.
Este regime foi substituído em 1936, com a entrada em vigor da Lei n.º 1942. Preservados os traços essenciais da legislação pretérita, o novo diploma veio alargar a responsabilidade do empregador por acidentes de trabalho, nos termos da denominada «teoria do risco de autoridade», explicitamente adotada no Parecer da Câmara Corporativa sobre a Proposta de Lei n.º 67, de 7 de fevereiro de 1936. A esta lei, que se manteve em vigor até 1971, sucederam-se a Lei n.º 2127, de 3 de agosto de 1965; a Lei n.º 100/97, de 13 de setembro (regulamentada pelo Decreto-Lei n.º 143/99, de 30 de abril); e a Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro, atualmente em vigor, a qual, nos termos do n.º 1 do seu artigo 1.º, «regulamenta o regime de reparação de acidentes de trabalho e doenças profissionais, incluindo a reabilitação e reintegração profissionais, nos termos do artigo 284.º do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro.»
Pese embora esta sucessão de leis, o sistema português não sofreu alterações de grande monta desde as suas origens, sendo de assinalar a resistência do legislador em acompanhar a tendência, verificada no resto da Europa, para a incorporação dos acidentes de trabalho no âmbito material da segurança social. Com efeito, não obstante a «declaração de princípio» constante do artigo 52.º, n.º 1, alínea d), das Bases da Segurança Social, aprovadas pela Lei n.º 4/2007, de 16 de janeiro, a reparação por acidentes de trabalho continua a assentar no modelo de transferência obrigatória de responsabilidade do empregador para uma entidade seguradora; por outro lado, no que diz respeito às doenças profissionais, a proteção passou a ser garantida no quadro da segurança social a partir de 1981, com a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 200/81, de 9 de julho.
9. Os vários regimes de acidentes de trabalho e doenças profissionais — quer aqueles que se reconduzem ao sistema de segurança social, quer os que dão corpo ao modelo de seguro obrigatório — partilham uma característica comum: visam a reparação, não do dano integral (o «dano civil»), mas de um dano restrito (o «dano laboral»). É aqui que se encontra a chave para compreender a função do instituto da reparação por infortúnio laboral — e, nessa exata medida, o conteúdo do direito consagrado na alínea f) do n.º 1 do artigo 59.º da Constituição.
Nos termos do artigo 8.º do RAT, «[é] acidente de trabalho aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza direta ou indiretamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulta redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou morte».
Há dois aspetos a reter nesta definição, semelhante à que se pode encontrar em qualquer legislação estrangeira na matéria. O primeiro é que o acidente de trabalho se consubstancia num certo tipo de lesão: «lesão corporal, perturbação funcional ou doença»; um acidente ocorrido no local de trabalho, do qual o trabalhador sai ileso, mas em virtude do qual é destruído um aparelho eletrónico de que é proprietário, não constitui, nestes termos, um infortúnio laboral. O segundo é que o regime jurídico dos acidentes de trabalho considera apenas uma certa categoria de danos resultantes do tipo de lesão que constitui um infortúnio laboral: aqueles que se consubstanciam na «redução da capacidade de trabalho ou de ganho ou [n]a morte» do lesado; os danos não patrimoniais e os danos patrimoniais que não se traduzam, por força de morte ou de incapacidade, numa perda de rendimentos de trabalho, situam-se fora do âmbito da reparação concedida por este instituto.
Tudo isto é coerente com o regime da reparação, também ele semelhante ao que se encontra em legislações estrangeiras. Segundo o artigo 23.º, do RAT, o direito à reparação compreende prestações em espécie — «de natureza médica, cirúrgica, farmacêutica, hospitalar e quaisquer outras» — e em dinheiro — «indemnizações, pensões, prestações e subsídios». E quanto às primeiras, a lei determina que podem revestir qualquer forma, «desde que necessária e adequada ao restabelecimento do estado de saúde e da capacidade de trabalho ou de ganho do sinistrado e à sua recuperação para a vida ativa.»
A leitura destes preceitos revela que a reparação por acidentes de trabalho não desempenha uma função indemnizatória — a reconstituição da «situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação», segundo a definição constante do artigo 562.º do Código Civil —, mas uma função garantística — a de restabelecer ou substituir a capacidade de ganho inerente ao exercício da vida ativa numa economia de mercado. A sua finalidade essencial não é a transferência de um dano para a esfera de terceiro que por ele se possa reputar responsável — o que justificaria, pelo menos prima facie, o direito a indemnização, ou seja, a reparação integral —, mas a reparação de uma situação de necessidade económica, que se presume a partir do facto — postulado pelo direito laboral — de que aquele que trabalha por conta de outrem carece da retribuição da prestação de trabalho subordinado para assegurar a sua subsistência e dos seus dependentes.
Como se escreveu no Acórdão n.º 433/2016:
«[A] principal função das pensões é a de substituição ou compensação da perda de contribuição que o vencimento do próprio trabalhador representava para a sua subsistência. Verificada (médica e judicialmente) uma incapacidade permanente, a reparação do dano causado ao trabalhador é feita pela compensação (através de uma prestação periódica em dinheiro) da redução na capacidade de trabalho ou ganho da vítima acarretada por aquela.
Já o direito à reparação em espécie – neste caso reparações de natureza médica – é devido sempre que estas prestações se mostrem necessárias e adequadas ao restabelecimento do estado de saúde e da capacidade de trabalho ou de ganho da vítima e à sua recuperação para a vida ativa. A função das prestações em espécie é, assim, dirigida à reintegração da situação, no que for médica e tecnicamente (em cada momento) possível.»
É certo que, no direito português, a responsabilidade pela reparação cabe à entidade patronal, o que permitirá porventura ainda qualificá-la como uma forma de responsabilidade civil, de tipo objetivo, assente no entendimento de que, devendo-se os infortúnios laborais à materialização de riscos inerentes à prestação do trabalho, é justo que por eles respondam os empregadores. Aliás, e como vimos, na origem do instituto da reparação por acidentes de trabalho e doenças profissionais, estão regimes de responsabilidade objetiva; é o caso da lei prussiana de 1838, da lei alemã de 1871 e da lei francesa de 1898.
Porém, importa não confundir o essencial com o contingente.
Comum a todos os sistemas neste domínio é a reparação do dano estritamente laboral, consubstanciado na perda de capacidade de ganho do trabalhador vítima de acidente de trabalho ou doença profissional. O que varia de sistema para sistema, de acordo com as suas tradições e opções legislativas, é a forma jurídica — privada ou pública — e os agentes de financiamento — empregadores ou contribuintes — através dos quais se efetiva essa reparação, bem como as funções acessórias que estas desempenham.
Na verdade, a função essencialmente garantística do instituto da reparação por infortúnio laboral não se revela apenas na definição do dano reparável. Ela perpassa todo o regime comum dos acidentes de trabalho:
(i) É considerado acidente de trabalho aquele que ocorrer «no exercício do direito de reunião ou de atividade de representante dos trabalhadores» [artigo 9.º, n.º 1, alínea b)] e «[e]m atividade de procura de emprego durante o crédito de horas para tal concedido por lei aos trabalhadores com processo de cessação do contrato de trabalho em curso» [alínea g)]. Nestas situações, em que não se consegue discernir qualquer nexo etiológico entre a autoridade ou o interesse do empregador e o infortúnio do trabalhador, o conceito de acidente de trabalho excede largamente o âmbito da responsabilidade civil.
(ii) Ao contrário do que decorre das regras gerais, a culpa do lesado não exime o empregador de responsabilidade objetiva (na terminologia da lei, não «descaracteriza o acidente de trabalho»), exceto se o acidente tiver sido «dolosamente provocado pelo sinistrado ou provier do seu ato ou omissão que importe a violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei» [artigo 14.º, n.º 1, alínea a)] ou «[p]rovier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado» [alínea b]. Este regime revela a prevalência da função garantística sobre o princípio da imputação no instituto da reparação por infortúnio laboral.
(iii) Os créditos provenientes do direito à reparação são «inalienáveis, impenhoráveis e irrenunciáveis» (artigo 78.º), sendo a regra geral a de que a reparação reveste a forma de uma pensão vitalícia, paga mensalmente (artigo 72.º, n.º 1), cuja remição está sujeita a limites apertados (artigo 75.º, n.º 2). Estas soluções têm em vista assegurar a função primária da reparação por infortúnio laboral: a subsistência continuada do trabalhador e/ou dos seus dependentes.
(iv) Nos termos do artigo 17.º, «[q]uando o acidente for causado por outro trabalhador ou por terceiro, o direito à reparação devida pelo empregador não prejudica o direito de ação contra aqueles, nos termos gerais» (n.º 1) e «[o] empregador ou a sua seguradora que houver pago a indemnização pelo acidente pode sub-rogarse no direito do lesado contra os responsáveis referidos no n.º 1 se o sinistrado não lhes tiver exigido judicialmente a indemnização no prazo de um ano a contar da data do acidente» (n.º 4). Resulta destes preceitos que a reparação do dano laboral constitui uma derrogação do princípio casum sentit dominus e, nessa medida, uma garantia subsidiária em relação à reparação integral.
(v) Ao contrário do que sucede na Alemanha — e do que sucedia, com a exceção dos danos morais, na legislação portuguesa anterior à Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro —, a responsabilidade do empregador pela reparação do dano laboral não tem como contrapartida a isenção de responsabilidade pela indemnização do dano civil, nos termos gerais. Com efeito, o artigo 18.º do RAT determina que o trabalhador tem o direito a reparação integral no caso de o infortúnio se ficar a dever a conduta culposa do empregador (ou de outros agentes na sua dependência), sem prejuízo de a indemnização não poder, naturalmente, exceder o dano residual.
(vi) De acordo com o artigo 82.º, no caso de insolvência da entidade seguradora, o pagamento das pensões atribuídas em virtude de infortúnio laboral é assegurado pelo Fundo de Acidentes de Trabalho, o qual também assegura o pagamento dos prémios de seguro quando a entidade empregadora se encontrar impossibilitada de o fazer. Ao subtraírem a reparação por infortúnio laboral às vicissitudes do mercado, estas disposições reforçam a sua natureza garantística.
10. Como vimos, o conteúdo do direito consagrado no artigo 59.º, n.º 1, alínea f), da Constituição, corresponde à função desempenhada pelo instituto da reparação por infortúnio laboral; é, em termos aproximados, o direito a que seja preservada a função essencial desse instituto. Temos, por isso, que tal direito constitui uma garantia de reparação do dano laboral, o mesmo é dizer, de reconstituição ou de compensação da capacidade de ganho perdida pelo trabalhador em virtude de ter sofrido um acidente de trabalho ou de ter contraído uma doença profissional.
Importa agora aprofundar a noção de perda de capacidade geral de ganho, o mesmo é dizer, de dano laboral.
Pode entender-se que o dano laboral diz apenas respeito à capacidade de o sinistrado continuar a prestar o trabalho pelo qual aufere a sua retribuição (a capacidade de ganho atual), pelo que não é devida qualquer reparação pela desvalorização ou incapacidade de o sinistrado prestar outro tipo de trabalho (a capacidade de ganho potencial); em suma, é compensada a perda de produtividade, mas não a perda de oportunidade. Esta posição pode valer-se do facto de a pensão por incapacidade ser invariavelmente calculada tendo por base a retribuição auferida na data da ocorrência do acidente ou do diagnóstico da doença e não, por exemplo, o rendimento potencial ─ em todo o caso, indeterminável ─ do trabalhador. Na verdade, em todos os casos de incapacidade permanente, o sinistrado recebe uma percentagem do valor da retribuição ─ de 80% ou de 50% a 70% do valor total, consoante se trate de incapacidade absoluta para todo e qualquer trabalho ou incapacidade absoluta para o trabalho habitual, e de 70% do valor correspondente ao coeficiente de incapacidade, no caso de incapacidade parcial (artigo 48.º do RAT) ─, o que aponta no sentido de que a função da pensão por incapacidade é a de reparar a perda presumível de retribuição. Esta noção de dano laboral é ainda coerente com uma certa conceção ─ restritiva ─ da função de garantia da reparação por infortúnio laboral: não está em causa indemnizar o trabalhador, mas assegurar a sua subsistência, posta em risco pela perda de capacidade para efetivar a contrapartida da sua retribuição.
O entendimento contrário é o de que o dano laboral compreende a perda de oportunidade profissional, ou seja, a desvalorização do sinistrado no mercado de trabalho, e não apenas no seu trabalho habitual. Neste sentido, concorre o argumento de que a reparação por infortúnio laboral não se destina apenas a compensar a perda imediata de rendimentos de trabalho, mas a perda de capacidade do sinistrado para, ao longo da fase ativa do ciclo de vida, se fazer valer da força de trabalho para assegurar a subsistência continuada de si próprio e dos seus dependentes. Com efeito, numa economia de mercado, o «trabalho habitual» é uma realidade contingente, estando sujeita a vicissitudes várias, como a modificação dos padrões de consumo, o desenvolvimento tecnológico ou os humores da economia; o que assegura a subsistência continuada do trabalhador é a possibilidade permanente de colocar a sua força de trabalho no mercado, possibilidade essa comprometida quando sofre uma lesão em virtude da qual se verifica uma redução das suas capacidades profissionais. Por outro lado, não prejudica necessariamente esta conclusão o facto de a pensão por incapacidade ser calculada tendo por base a retribuição auferida no momento do infortúnio. O fundamento dessa solução — um elemento perene do instituto da reparação por infortúnio laboral — prende-se, essencialmente, com a previsibilidade proporcionada pelo regime de reparação tarifada (por contraposição a um regime de liquidação do dano) e com a finalidade garantística dessa reparação (por contraposição a uma finalidade indemnizatória).
Para além destas razões, de ordem teleológica ou funcional, também concorrem no último sentido alguns argumentos extraídos da lei.
Em primeiro lugar, ao classificar as diversas espécies de incapacidade permanente, o artigo 19.º, n.º 3, do RAT, admite que a incapacidade absoluta possa ser «para o trabalho habitual» ou «para todo o tipo de trabalho», sendo a pensão devida superior no segundo caso (artigo 48.º, n.º 3); ora, se a lei atribui, para efeitos de graduação da carência económica do sinistrado, um valor positivo à capacidade residual para participar no mercado de trabalho, tem de presumir-se, por uma questão de coerência, que atribui um valor negativo à depreciação dessa capacidade.
Em segundo lugar, o artigo 21.º dispõe que «o grau de incapacidade [é determinado], em todos os casos,…em função da natureza e da gravidade da lesão, do estado geral do sinistrado, da sua idade e profissão, bem como da maior ou menor capacidade funcional residual para o exercício de outra profissão»; ora, se a capacidade funcional residual releva em todos os casos, deve admitir-se que a perda de oportunidades profissionais é considerada na determinação da incapacidade parcial.
Finalmente, a Tabela Nacional de Incapacidades, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 352/2007, de 23 de outubro — para a qual remete o artigo 23.º do RAT —, faz geralmente corresponder, a cada tipo de lesão, uma «moldura abstrata» de incapacidade (v.g., escoliose pronunciada ─ 0,11-0,15; fístula vesico-retal ─ 0,55-0,65; incontinência urinária ─ 0,21-0,45); significa isto que a determinação do coeficiente concreto de incapacidade está balizada por limites máximos e mínimos ─ ainda que estes sirvam de mera orientação da avaliação médico-legal ─, limites esses que não têm obviamente em conta qualquer tipo particular de trabalho, antes refletindo um juízo abstrato sobre a repercussão de certa categoria de lesão no exercício da vida ativa.
Ambas as conceções de dano laboral ─ a restrita e a ampla ─ são, em abstrato, conformes a uma interpretação funcionalmente adequada do instituto da reparação por infortúnio laboral. O pedido do requerente reflete inequivocamente a adesão a uma conceção ampla, como decorre da leitura dos §§ 17.º a 23.º e 36.º da fundamentação do pedido de fiscalização da constitucionalidade das normas sindicadas, em que se sublinha a repercussão negativa do infortúnio laboral na «capacidade de progredir normalmente na carreira», na «potencialidade de obter rendimento», na «capacidade de evoluir profissionalmente» e nas «perspetivas em termos de carreira». Todavia, o Tribunal não vê qualquer utilidade em se pronunciar, no âmbito deste processo, sobre essa exata questão. Embora a definição precisa do conceito de dano laboral seja imprescindível para uma determinação exaustiva do conteúdo do direito fundamental à assistência e justa reparação em caso de acidente de trabalho ou doença profissional, a mesma não influi decisivamente sobre o exame do thema decidendum. Na verdade, como se verá, qualquer que seja a conceção de dano laboral adotada ─ restrita ou ampla ─, o sentido da decisão sobre a constitucionalidade das proibições de acumulação introduzidas no RAS pela Lei n.º 11/2014, de 6 de março, é o mesmo. Por essa razão, a questão da definição de dano laboral, para efeitos da determinação do conteúdo do direito fundamental a assistência e justa reparação, reveste-se, neste âmbito, de interesse teórico.
11. Os trabalhadores da Administração Pública são titulares do direito fundamental à assistência e reparação em caso de infortúnio laboral, direito que impõe a reconstituição ou compensação da perda de capacidade de ganho da vítima de acidente de trabalho ou doença profissional. No entanto, não lhes é aplicável, em geral, o regime comum dos acidentes de trabalho e doenças profissionais; os infortúnios laborais no setor público são, e sempre foram, objeto de um regime especial. Importa, pois, dar conta das diferentes soluções legais para os casos de incapacidade permanente adotadas neste domínio.
O primeiro diploma em matéria de acidentes em serviço foi o Decreto-Lei n.º 38.523, de 23 de novembro de 1951, cujo âmbito material de aplicação foi alargado às doenças profissionais através do disposto no Decreto-Lei n.º 45.004, de 27 de abril de 1963. O seu artigo 12.º determinava que «[n]o caso de se verificar a existência de incapacidade permanente parcial com a atribuição de serviço moderado, o servidor deve, conforme o coeficiente de desvalorização e a natureza das suas funções, continuar ao serviço ou passar a receber a pensão de reforma extraordinária, nos termos da respetiva legislação.»
Durante quase três décadas, a matéria passou a ser regulada no Estatuto da Aposentação, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 498/72, de 9 de dezembro, cujo artigo 1.º determinava que «[s]ão obrigatoriamente inscritos como subscritores da Caixa Geral de Aposentações…os servidores do Estado, institutos públicos e autarquias locais…». O artigo 38.º estabelecia que havia lugar a aposentação, independentemente da idade e do tempo de serviço, do funcionário que, em virtude de acidente em serviço ou de doença contraída neste, adquirisse uma incapacidade permanente absoluta ou parcial. O artigo 54.º, n.º 1, dispunha que, nestes casos, de aposentação dita «extraordinária», o tempo de serviço do subscritor considerava-se equivalente a quarenta anos, o tempo de serviço exigido na versão originária do artigo 37.º, n.º 1, para a aposentação dita «ordinária» (entretanto reduzido para trinta e seis anos, através da alteração do Estatuto da Aposentação operada pelo Decreto-Lei n.º 191-A/79, de 25 de junho).
No entanto, o n.º 2 consagrava uma exceção para os casos de incapacidade parcial, nos termos da qual o funcionário teria direito a uma pensão resultante da soma de uma parcela correspondente ao número de anos de serviço efetivo e de uma parcela correspondente ao coeficiente de incapacidade multiplicado pelo número de anos que faltariam para completar quarenta anos de serviço. Ilustrando, um funcionário com uma incapacidade de 50% e vinte anos de serviço, teria direito a uma pensão igual à soma da pensão de aposentação correspondente a vinte anos de serviço e de uma pensão de aposentação correspondente a metade dos vinte anos de serviço que seriam necessários para atingir os quarenta anos; tudo visto e somado, receberia ¾ da pensão de aposentação de um funcionário com um estatuto remuneratório idêntico que requeresse a aposentação após completar quarenta anos de serviço. Por outro lado, através do artigo 89.º, n.º 1, a lei atribuía ao funcionário com uma incapacidade parcial o direito de optar entre manter-se no serviço ou aposentar-se, ao passo que, nos casos de incapacidade absoluta, a aposentação era compulsória.
É importante compreender a lógica subjacente a este regime e atentar nos seus efeitos práticos.
Nos casos de incapacidade absoluta, em que o funcionário deixava de reunir condições para servir a Administração Pública, a reparação do dano laboral, decorrente da inevitável extinção do vínculo de emprego público, revestia a forma de aposentação em condições idênticas às de um funcionário que tivesse completado o tempo de serviço normal; por outras palavras, a lei colocava o funcionário vítima de acidente de trabalho ou doença profissional na mesma posição que um funcionário não atingido por infortúnio, através da ficção da contagem do tempo de serviço necessário para a aposentação.
Nos casos de incapacidade parcial, o funcionário, possuidor de capacidade residual para trabalhar, podia optar entre continuar ao serviço da Administração Pública ─ com retribuição e regalias intocadas e direito à aposentação ordinária uma vez completados quarenta anos de serviço ─ ou requerer a aposentação extraordinária; neste último caso, também beneficiava da ficção da contagem do tempo de serviço necessário para a aposentação, mas a pensão era reduzida na proporção da capacidade residual ─ que, por efeito da aposentação voluntária, deixava de ser colocada ao serviço da Administração Pública ─, precisamente para assegurar a igualdade de circunstâncias com os funcionários não atingidos por infortúnio laboral.
Na prática, o regime incentivava a aposentação nas situações em que o sinistrado tinha muito tempo de serviço e/ou adquiria uma incapacidade elevada ─ na medida em que, aposentando-se, deixava de trabalhar e recebia uma pensão de valor muito próximo da devida por aposentação ordinária ─ e a manutenção em funções nos casos em que o sinistrado tinha pouco tempo de serviço e/ou adquiria uma incapacidade diminuta.
12. O regime constante do Estatuto da Aposentação veio a ser substituído com a aprovação do Decreto-Lei n.º 503/99, de 20 de novembro, que estabelece o Regime Jurídico dos Acidentes em Serviço e das Doenças Profissionais no Âmbito da Administração Pública (RAS), sem prejuízo de aquele continuar a ser aplicável, nos termos das regras gerais, aos infortúnios laborais ocorridos ou diagnosticados antes de 1 de maio de 2000, a data da entrada em vigor do novo diploma.
Segundo o preâmbulo, «[o] presente diploma acolhe, na generalidade, os princípios consagrados na…Lei n.º 100/97 (lei geral) adaptando-os às especificidades da Administração Pública.» A explicação prossegue, nos seguintes termos:
«[É afastada] a solução prevista no Estatuto da Aposentação para os subscritores da Caixa Geral de Aposentações, pensão extraordinária ou reforma, consubstanciada no acréscimo à pensão ordinária de uma parcela indemnizatória que tinha em conta o número de anos e meses que faltassem para o tempo máximo de serviço contável para a aposentação e o grau de desvalorização atribuído.»
Tem interesse dar a conhecer os traços essenciais deste regime.
No Capítulo I, dedicado às disposições gerais, o artigo 4.º reconhece o direito a reparação por infortúnio laboral, dispondo que «[o]s trabalhadores têm direito, independentemente do respetivo tempo de serviço, à reparação, em espécie e dinheiro, dos danos resultantes de acidentes em serviço e de doenças profissionais» (n.º 1). Para além do direito a «reparação em espécie», que compreende prestações de natureza médica e similares, o transporte e estada, e a readaptação, reclassificação e reconversão profissional (n.º 3), o n.º 4 do mesmo artigo estabelece o direito a «reparação em dinheiro», a qual abrange, entre diversas prestações, o subsídio por situações de elevada incapacidade permanente, as despesas de funeral e subsídio por morte, a pensão aos familiares, no caso de morte, e uma «(i)ndemnização em capital ou pensão vitalícia correspondente à redução na capacidade de trabalho ou de ganho, no caso de incapacidade permanente» [alínea b)]. No artigo 5.º («Responsabilidade pela Reparação») determina-se que, «[o] empregador ou entidade empregadora é responsável pela aplicação do regime dos acidentes em serviço e doenças profissionais previsto neste diploma» (n.º 1) e que, «[n]os casos em que se verifique incapacidade permanente ou morte, compete à Caixa Geral de Aposentações a avaliação e a reparação…» (n.º 3).
O Capítulo II contém a disciplina dos acidentes em serviço, discriminando as formas da sua reparação. No que respeita a prestações em espécie, estas compreendem os primeiros socorros (artigo 10.º), a assistência médica (artigo 11.º) e os transportes e estada (artigo 14.º); quanto a prestações em dinheiro, salienta-se o direito à remuneração e outras regalias (artigo 15.º), o qual consiste na garantia de que «[n]o período de faltas ao serviço, em resultado de acidente, o trabalhador mantém o direito à remuneração, incluindo os suplementos de caráter permanente…». No artigo 23.º, sob a epígrafe «Reintegração Profissional», determina-se, no n.º 1, que, «[n]o caso de incapacidade temporária parcial que não implica ausência ao serviço, o superior hierárquico deve atribuir ao sinistrado trabalho compatível com o seu estado…» (n.º 1), acrescentando-se, no n.º 2, que o trabalho compatível «inclui a atribuição de tarefas e a duração e o horário de trabalho adequados ao estado de saúde do trabalhador» e, no n.º 3, que, «[q]uando se verifique incapacidade permanente que impossibilite o trabalhador de exercer plenamente as suas anteriores funções ou quando destas possa resultar o agravamento do seu estado de saúde, este tem direito a ocupação em funções compatíveis com o respetivo estado, a formação profissional, a adaptação do posto de trabalho e a trabalho a tempo parcial e o dever de se candidatar a todos os procedimentos concursais para ocupação de postos de trabalho previstos nos mapas de pessoal dos órgãos ou serviços…». Finalmente, o n.º 4 do mesmo artigo estabelece a intangibilidade da retribuição: «[a]s situações referidas no número anterior não implicam, em caso algum, a redução de remuneração nem a perda de quaisquer regalias».
O Capítulo III contém o regime das doenças profissionais, o qual se traduz, em muito larga medida, numa mera remissão para as normas sobre os acidentes em serviço. A propósito das prestações em espécie (artigo 29.º), a lei limita-se a determinar a aplicação, com as necessárias adaptações, do disposto nos artigos 11.º a 14.º, 23.º e 24.º do diploma; e quanto às prestações em dinheiro, o artigo 32.º prescreve a aplicação às doenças profissionais, com as necessárias adaptações, do disposto nos artigos 15.º a 18.º.
O Capítulo IV regula a «Responsabilidade da Caixa Geral de Aposentações (CGA)», dispondo-se no artigo 34.º («Incapacidade Permanente ou Morte») que, «[s]e do acidente em serviço ou da doença profissional resultar incapacidade permanente ou morte, haverá direito às pensões e outras prestações previstas no regime geral» (n.º 1), sendo estas pensões e prestações atribuídas e pagas pela CGA (n.º 4) ─ muito embora, com a aprovação da Lei n.º 4/2009, de 29 de janeiro (Regime de Proteção Social dos Trabalhadores que Exercem Funções Públicas, referido adiante pela sigla «RPS»), essas responsabilidades recaiam agora indiretamente sobre as próprias entidades empregadoras públicas, através da obrigação de reembolsar a CGA (artigo 21.º, n.º 3). É nesta parte do diploma que se insere o artigo 41.º ─ com a epígrafe, «Acumulação de Prestações» ─ o qual, na versão originária, como vimos, permitia expressamente a acumulação da pensão por incapacidade permanente com a totalidade da pensão de aposentação e permitia implicitamente a acumulação daquela com a totalidade da retribuição.
Este regime de acumulação de prestações manteve-se em vigor até 7 de março de 2014, data da entrada em vigor da Lei n.º 11/2014 ─ sem prejuízo de continuar, naturalmente, a reger os acidentes de trabalho ocorridos e as doenças profissionais diagnosticadas no decurso da sua vigência ─, diploma que procedeu às alterações do Decreto-Lei n.º 503/99 impugnadas pelo requerente. Na verdade, o artigo 41.º é o único preceito do RAS alterado pela Lei n.º 11/2014, precisamente no sentido, controvertido nos autos, de proibir a acumulação da pensão por incapacidade permanente parcial com a totalidade da retribuição ou da pensão de aposentação.
Estamos, finalmente, em condições de determinar se estas proibições de acumulação infringem o disposto na alínea f) do n.º 1 do artigo 59.º da Constituição.
13. A pensão por incapacidade ─ como se concluiu ─ destina-se a reparar o dano laboral, consubstanciado na perda de capacidade de ganho do trabalhador vitimado por acidente de trabalho ou doença profissional. Sucede que os trabalhadores da Administração Pública, em virtude das características próprias do emprego público, não sofrem, normalmente, qualquer redução da capacidade de ganho quando vítimas de infortúnio laboral que os deixa parcialmente incapacitados; por outras palavras, no emprego público não se verifica, em princípio, dano laboral, nos casos de incapacidade permanente parcial. É por essa razão que o artigo 41.º, n.º 1, alínea b), do RAS, na versão que resultou da Lei n.º 11/2014, suspende o pagamento da pensão por incapacidade: sendo o pressuposto do direito a esta a existência de um dano laboral, não faz sentido que a mesma seja paga em circunstâncias ─ aquelas que caracterizam a relação jurídica de emprego público ─ que impedem a produção desse dano.
Para demonstrar que os acidentes de trabalho e as doenças profissionais parcialmente incapacitantes não produzem dano laboral, é conveniente dividir o problema em duas partes: a capacidade de ganho atual, que se prende com a capacidade de o trabalhador manter a sua remuneração, e a capacidade de ganho potencial, que se prende com a capacidade de o trabalhador manter as suas oportunidades profissionais.
Quanto à primeira ─ a capacidade de ganho atual ─, a impossibilidade de verificação de um prejuízo resulta simplesmente da intangibilidade da retribuição, assegurada pelo n.º 4 do artigo 23.º do RAS. Com efeito, a perda definitiva de capacidade de trabalho não tem qualquer consequência no estatuto remuneratório do sinistrado; este continua, ainda que venha a ocupar funções diversas e a beneficiar de horário de trabalho reduzido (nos termos do n.º 3 do artigo 23.º), a manter a totalidade da retribuição e todas as regalias correspondentes à categoria que integra e à posição remuneratória que ocupa. Em suma, no que diz respeito a ganhos atuais, a perda definitiva de capacidade de trabalho não ocasiona a perda definitiva de capacidade de ganho; pelo contrário, o trabalhador em funções públicas, ao receber a totalidade da parcela da retribuição correspondente ao seu coeficiente de incapacidade, obtém uma vantagem patrimonial em relação a uma situação hipotética de perda dessa parcela da retribuição e de recebimento de uma pensão por incapacidade parcial fixada em 70% daquela. Daí decorre que, com base numa conceção restrita de dano laboral, o fundamento da proibição de acumulação consagrada na alínea b) do n.º 1 do artigo 41.º do RAS ─ e, em consequência, das restantes proibições de acumulação controvertidas nos presentes autos ─ é a garantia da intangibilidade da retribuição consagrada no artigo 23.º, n.º 4, do diploma.
A segunda parte do problema ─ a capacidade de ganho potencial ─ é mais complexa. Impõe-se tratá-la segundo a perspetiva, adotada pelo requerente, de uma «conceção ampla» do dano laboral, nos termos da qual a pensão por incapacidade se destina também a reparar a perda de «capacidade de progredir normalmente na carreira», de «potencialidade de obter rendimento», da «capacidade de evoluir profissionalmente» ou das «perspetivas em termos de carreira» decorrentes de infortúnio laboral.
Pode pensar-se que o acidente de trabalho ou a doença profissional, ao deixar o trabalhador parcialmente incapacitado, constitui um obstáculo à progressão profissional dentro da Administração Pública. No exemplo dado na fundamentação do pedido, «um técnico superior jurista que sofre um acidente de trabalho, do qual resulta a amputação de um membro inferior…poderá ver, por exemplo, dificultado o exercício de outras funções, com as de inspeção, envolvendo a necessidade de deslocações frequentes…[com prejuízo para as suas] perspetivas de evolução profissional.»
Mas este exemplo não tem em devida conta diferenças relevantes entre o emprego público e a relação laboral sujeita ao regime comum. Sem prejuízo da denominada «laboralização da função pública» (v., entre muita jurisprudência constitucional pertinente, o Acordão n.º 474/2013), cujo traço mais saliente é porventura a substituição do ato administrativo de nomeação pelo contrato de trabalho em funções públicas como modalidade típica de constituição do vínculo de emprego público, há relevantes diferenças entre o trabalho comum e o trabalho em funções públicas que se projetam de modo decisivo no domínio dos infortúnios laborais. O objeto daquele é, paradigmaticamente, uma prestação laboral conformada pelo contrato de trabalho celebrado entre o empregador e o trabalhador; em princípio, este ocupa um determinado posto de trabalho e exerce uma determinada função no âmbito da empresa ou organização do empregador. Pelo contrário, o emprego público ─ hoje regulado pela Lei do Trabalho em Funções Públicas, aprovada pela Lei n.º 20/2014, de 20 de junho (adiante referida pela sigla «LTFP») ─ é estruturado de modo tipicamente diverso. O objeto da relação jurídica de emprego público não é uma prestação laboral, consubstanciada num determinado posto e função, mas o serviço público no âmbito de uma carreira, normalmente de natureza geral (artigo 84.º, n.º 4, da LTFP), definida pela lei como aquela «cujos conteúdos funcionais caracterizam postos de trabalho de que a generalidade dos órgãos ou serviços carece para o desenvolvimento das respetivas atividade» (artigo 84.º, n.º 2, da LTFP). Dentro da carreira, o trabalhador ocupa, não um posto de trabalho, mas uma categoria, com um conteúdo funcional genérico, podendo as carreiras ser unicategoriais ou pluricategoriais (artigo 85.º). Na carreira geral de técnico superior, por exemplo, a categoria única de técnico superior tem, nos termos do Anexo à LTFP para o qual remete o n.º 2 do artigo 88.º, o seguinte conteúdo, em versão abreviada: «funções consultivas, de estudo planeamento programação, avaliação e aplicação»; «elaboração de pareceres e projetos e execução de outras atividades de apoio geral»; «funções exercidas com responsabilidade e autonomia técnica»; e «representação do órgão ou serviço em assuntos da sua especialidade».
Ora, dada a extensão do conteúdo funcional do trabalho em funções públicas, a incapacidade parcial do trabalhador ─ v.g., a impossibilidade de conduzir inspeções ─ não deve obstar a que este desempenhe funções compatíveis com a sua capacidade de trabalho residual, seja avaliado pelo desempenho no exercício de tais funções, progrida nas posições remuneratórias da sua categoria e possa ingressar, pela antiguidade ou por concurso, numa categoria superior dentro da sua carreira pluricategorial (v.g., um assistente operacional ascender a encarregado operacional) ou numa carreira superior àquela em que está inserido (v.g., um assistente técnico candidatar-se a técnico superior). Por essa razão, no domínio das carreiras gerais, não faz sentido considerar a possibilidade de incapacidade absoluta para o trabalho habitual, ao contrário do que sucede no regime comum dos infortúnios laborais (artigo 3.º, n.º 1, alíneas l) e m) do RAS). Sendo a norma, no emprego público, a de que não há «trabalho habitual», mas apenas categorias funcionais genéricas, o sinistrado, ou se encontra incapacitado para todo e qualquer trabalho em funções públicas — caso em que a sua incapacidade é absoluta e importa a extinção do vínculo de emprego público —, ou não pode prestar somente alguns tipos particulares de trabalho — caso em que a sua incapacidade é parcial, não prejudicando o trabalho em funções compatíveis com a sua capacidade residual.
É em função destas relevantes diferenças entre o emprego público e o trabalho comum que o Tribunal Constitucional afirmou, no Acórdão n.º 154/86, ainda que num contexto diverso, que «[n]em a extinção ou remodelação de serviços podem constituir motivo adequado para [o Estado dispensar os seus funcionários]. Podem dar lugar à transferência para outros serviços ou organismos públicos, à criação de excedentes inativos, etc, mas não podem justificar de modo algum a dispensa dos atingidos…». Daí que o n.º 3 do artigo 23.º, após consagrar o direito do trabalhador a ocupar funções compatíveis com o seu estado, a adaptação ao posto de trabalho e o trabalho em tempo parcial, determine que este tem o «o dever de se candidatar a todos os procedimentos concursais para ocupação de postos de trabalho previstos nos mapas de pessoal dos órgãos ou serviços» ─ o mesmo é dizer, o dever de colocar a sua capacidade residual de trabalho ao serviço das necessidades da Administração Pública. Na verdade, tendo em conta as amplíssimas possibilidades objetivas do «trabalho em funções públicas», o prejuízo remuneratório que o trabalhador sofra na sua carreira em virtude de possuir uma incapacidade de trabalho parcial, deverá constituir uma forma de discriminação, proibida nos termos dos artigos 13.º, n.º 2, 47.º, n.º 2 e, em algumas situações, 71.º, n.º 1, da Constituição.
A idêntica conclusão se chega, ainda que por via ligeiramente diversa, nos casos atípicos de trabalhadores em funções públicas inseridos em carreiras especiais, que a lei define como aquelas «cujos conteúdos funcionais caracterizam postos de trabalho de que apenas um ou alguns órgãos ou serviços carecem para o desenvolvimento das respetivas atividades» (artigo 84.º, n.º 3). Neste âmbito, é possível, de facto, que a perda de capacidade funcional do trabalhador vitimado por infortúnio laboral inviabilize o desempenho de tarefas essenciais da função a que a carreira diga respeito; serão os casos do agente policial que perde a mobilidade, do professor que perde a voz ou do oficial de justiça que perde a visão. Mas, nesses casos, a sua incapacidade é ─ por definição ─ absoluta, implicando a extinção do vínculo de emprego público e o pagamento da pensão por incapacidade correspondente. Pelo contrário, nos casos em que a perda de capacidade não obsta ao exercício da função, atingindo apenas a produtividade do trabalhador ou a sua capacidade de realizar tarefas não essenciais, valem todas as considerações feitas, a propósito do caso-padrão das carreiras gerais, sobre a circunstância de se não verificar, em princípio, qualquer prejuízo para a capacidade de ganho potencial do sinistrado.
A única oportunidade profissional dentro da Administração Pública que um trabalhador vitimado por infortúnio laboral perde em qualquer circunstância, em virtude da incapacidade parcial que adquiriu, é a de vir a ingressar numa carreira especial cujo conteúdo funcional é essencialmente incompatível com a sua capacidade de trabalho residual. Mas deve notar-se que esse prejuízo ─ relativamente extravagante ─ tem uma expressão negligenciável no quadro de um regime orientado, não para a indemnização do lesado, mas para a garantia da sua subsistência continuada; além do mais, o facto de os sinistrados, no âmbito do RAS, manterem a totalidade do seu vencimento ─ em vez de receberem, como dispõe o regime comum, apenas 70% da parcela da retribuição correspondente à incapacidade ─, constitui uma forma indireta de compensação desse dano intersticial.
Resulta do exposto que a alteração operada pela Lei n.º 11/2014 no regime da acumulação de prestações constante do artigo 41.º do RAS, se destinou a corrigir um desequilíbrio no regime anterior, que permitia que o trabalhador parcialmente incapacitado por infortúnio laboral, pese embora a intangibilidade da retribuição, regalias e oportunidades profissionais que tinha no momento da ocorrência do acidente ou do diagnóstico da doença, recebesse uma pensão cuja função é exclusivamente a de compensar uma perda de capacidade de ganho. De tal regime resultava que os trabalhadores em funções públicas viam a sua capacidade de ganho normalmente ampliada na eventualidade de sofrerem um acidente de trabalho ou doença profissional, situação que: (i) desvirtuava a função do instituto da reparação por infortúnio laboral, que é a de compensar a perda de capacidade de ganho do sinistrado; (ii) tendia a privilegiar, do ponto de vista patrimonial, os trabalhadores atingidos relativamente aos não atingidos por infortúnio; (iii) abria caminho a uma exposição imprudente ao perigo profissional, por força do efeito de «moral hazard» gerado por essa vantagem; e, em consequência, (iv) punha em causa a sustentabilidade financeira do sistema. Em suma, através desta alteração, o legislador restaurou, dentro dos quadros próprios do RAS, a harmonia funcional do sistema de proteção dos servidores públicos em caso de infortúnio laboral.
Resta esclarecer uma dúvida. Se o pagamento da pensão por incapacidade parcial é suspenso, no domínio dos infortúnios laborais em funções públicas, em virtude de, nesse domínio, se não verificar, em princípio, o dano laboral pressuposto pela reparação, como explicar a necessidade de determinação do coeficiente de incapacidade e da pensão correspondente? Por outras palavras, para quê fixar uma pensão cujo pagamento é suspenso, por não se verificar, afinal de contas, o pressuposto do direito que a tem por objeto?
Por duas razões.
Em primeiro lugar, o trabalhador, uma vez aposentado, tem direito ao pagamento da pensão por incapacidade, que prevalece sobre a pensão de aposentação, a qual é devida pela Caixa Geral de Aposentações (que, com a entrada em vigor do RPS, é reembolsada pela entidade empregadora pública) apenas na exata medida em que exceda aquela (artigo 41.º, n.º 3, do RAS). Esta solução ─ pagamento da pensão por incapacidade, acompanhada de dedução do seu valor na pensão de aposentação ─ assegura a igualdade entre os trabalhadores aposentados atingidos e não atingidos por infortúnio laboral, dado que a carreira contributiva daqueles não é afetada pela incapacidade parcial adquirida.
Em segundo lugar, sendo a razão de ser da suspensão o facto de o sinistrado prestar trabalho em funções públicas, este tem, como é evidente, direito ao pagamento da pensão no caso vir a ocorrer, por qualquer razão, a cessação do vínculo de emprego público. Nesse caso, a entrada do sinistrado no mercado de trabalho é condicionada pelo facto de possuir uma capacidade profissional reduzida, por efeito do infortúnio laboral que sofreu no serviço público — precisamente o pressuposto do direito do trabalhador a reparação.
Por tudo quanto se disse, impõe-se concluir que as normas constantes da alínea b) do n.º 1 e dos n.ºs 3 e 4 — quanto a este último, no segmento em que remete para aquelas — do artigo 41.º do Decreto-Lei n.º 503/99, de 20 de novembro, na redação dada pelo artigo 6.º da Lei n.º 11/2014, de 6 de março, não violam o direito dos trabalhadores a justa reparação, quando vítimas de acidente de trabalho ou de doença profissional, consagrado no artigo 59.º, n.º 1, alínea f), da Constituição.
14. A segunda questão de constitucionalidade colocada pelo requerente diz respeito ao confronto das normas sindicadas com o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da Constituição. Em causa está o facto de as proibições de acumulação contidas nessas normas não terem paralelo no regime comum dos acidentes de trabalho, nos termos do qual «[a] pensão por incapacidade permanente não pode ser suspensa ou reduzida mesmo que o sinistrado venha a auferir retribuição superior à que tinha antes do acidente, salvo em consequência de revisão da pensão» e «[a] pensão por incapacidade permanente é cumulável com qualquer outra» (artigo 51.º, n.ºs 1 e 2, do RAT). Ora, entende o requerente que «[n]ão se revelam, na verdade, quaisquer especificidades da relação de emprego público que justifiquem desvios face ao regime aplicável à generalidade dos trabalhadores por conta de outrem, no quadro da LAT». Por outras palavras, nada justifica que os trabalhadores em funções públicas estejam sujeitos às proibições de acumulação introduzidas no RAS pela Lei n.º 11/2014, quando os trabalhadores abrangidos pelo regime comum dos infortúnios laborais podem acumular a totalidade da retribuição ou da pensão de reforma com a pensão por incapacidade permanente parcial.
Tendo em conta que, na fundamentação do seu pedido de apreciação desta segunda questão, o requerente mobiliza boa parte dos argumentos articulados a propósito da primeira questão que submete ao juízo do Tribunal Constitucional, importa começar por delimitar o âmbito específico ou residual daquela. Se a primeira questão consubstancia essencialmente um problema de justiça absoluta — o de saber se as normas sindicadas não violam o direito dos trabalhadores por elas abrangidos a justa reparação em caso de acidente de trabalho ou de doença profissional —, a segunda questão consubstancia essencialmente um problema de justiça relativa — o de saber se a divergência de regimes de acumulação entre o RAT e o RAS não ofende o princípio da igualdade, por impor uma desvantagem patrimonial aos trabalhadores em funções públicas vítimas de infortúnio laboral relativamente aos seus homólogos abrangidos pelo regime comum.
São problemas de natureza diversa, de tal modo que, concluindo-se — como se concluiu — que as normas sindicadas não violam o direito dos trabalhadores a justa reparação por infortúnio laboral, nada obsta a que se conclua que violam outro direito fundamental, correspondente à vertente subjetiva do princípio da igualdade: o direito dos trabalhadores em funções públicas a serem tratados pela lei como iguais aos trabalhadores abrangidos pelo regime comum, em virtude do reconhecimento constitucional — expresso e cardinal — da igual dignidade social de todos os cidadãos.
Sobre o alcance geral do princípio da igualdade enquanto norma de controlo judicial do poder legislativo, escreveu-se no Acórdão n.º 409/99:
«O princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa, impõe que se dê tratamento igual ao que for essencialmente igual e que se trate diferentemente o que for essencialmente diferente. Na verdade, o princípio da igualdade, entendido como limite objetivo da discricionariedade legislativa, não veda à lei a adoção de medidas que estabeleçam distinções. Todavia, proíbe a criação de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias, isto é, desigualdades de tratamento materialmente não fundadas ou sem qualquer fundamentação razoável, objetiva e racional. O princípio da igualdade enquanto princípio vinculativo da lei, traduz-se numa ideia geral de proibição do arbítrio.»
A questão que se coloca, pois, é a de saber se as normas sindicadas, ao tratarem de modo diferente ─ através de regimes diversos de acumulação de prestações ─ trabalhadores em funções públicas e do regime comum, estabelecem entre eles uma distinção arbitrária, porque destituída de fundamento racional. Para responder a tal questão, é indispensável que se determine qual o ponto de vista ou termo de comparação entre os sujeitos a tratamento diferenciado, o que pressupõe a identificação da ratio legis. A diferença de tratamento será racional se for ditada pelo desiderato da lei — atente-se, por exemplo, na distinção entre automóveis ligeiros e pesados no regime que estabelece os limites de velocidade na circulação rodoviária. E a diferença de tratamento será arbitrária se não tiver qualquer relação, ou uma relação razoavelmente comensurável, com a ratio legis, como seria o caso se a lei estabelecesse limites de velocidade diversos consoante a proveniência geográfica do construtor do automóvel. Chega-se a estas conclusões, como é bom de ver, através da determinação, ainda que implícita, de um termo de comparação entre as pessoas ou situações diferenciadas pela lei; no caso dos limites de velocidade, cuja finalidade é mitigar o risco de acidentes e dos danos emergentes da sua ocorrência, o tertium comparationis integra as propriedades dos veículos que os tornam mais ou menos perigosos e mais ou menos aptos a provocar danos em caso de acidente ─ contando-se entre tais propriedades a massa do veículo, mas não a origem do seu construtor.
A finalidade da reparação por infortúnio laboral — como vimos — é a de compensar a perda de capacidade de ganho do sinistrado. Daí decorre que o ponto de vista mais relevante na comparação entre o regime comum e o regime especial dos trabalhadores em funções públicas, designadamente no que respeita à acumulação de prestações pecuniárias, é a vantagem patrimonial atribuída à vítima de infortúnio laboral. Ora, já sabemos quais são as razões pelas quais o legislador estabeleceu as proibições de acumulação que constam do artigo 41.º, n.º 1, alínea b), e n.ºs 3 e 4 — quanto a este último, no segmento em que remete para aquelas —, do RAS. Importa agora indagar a razão de ser do regime — diametralmente oposto — estabelecido pelo artigo 51.º, n.ºs 1 e 2, do RAT. Se dessa indagação resultar que a posição patrimonial do trabalhador comum vitimado por infortúnio laboral em nada de relevante se distingue da que caracteriza o trabalhador em funções públicas, o Tribunal concluirá, prima facie, pela violação do princípio da igualdade; pelo contrário, se a posição patrimonial for diversa, ao ponto de justificar razoavelmente a diferença de tratamento, impõe-se a formulação do juízo de sentido contrário.
15. Qual a justificação para o regime comum admitir a acumulação, sem reservas ou limites, da retribuição com a pensão por incapacidade permanente parcial e desta com a pensão de reforma?
A razão principal prende-se com o facto de a lei atribuir a faculdade e presumir a probabilidade de o empregador ajustar a retribuição do trabalhador em função da sua perda de produtividade, ou seja, de passar a remunerá-lo na proporção da sua capacidade residual de trabalho.
Com efeito, o artigo 157.º, n.º 3, do RAT, permite que o empregador reduza a retribuição do trabalhador sinistrado por acidente de trabalho ou afetado por doença profissional até ao limite da sua «capacidade restante». É certo que a lei concebe esta possibilidade como ultima ratio e condiciona a sua materialização ao cumprimento escrupuloso, por parte do empregador, dos deveres de requalificação profissional e ocupação efetiva impostos pelos artigos 155.º, 156.º e 157.º, n.ºs 1 e 2. Mas tal apenas evidencia a aderência do regime a uma sequência lógica de etapas: dada a preferência sistemática dos direitos romano-germânicos pela reconstituição natural em detrimento da reparação por sucedâneo pecuniário, o empregador está obrigado a contribuir para a reabilitação profissional do trabalhador — que, em caso de êxito, absoluto ou relativo, deverá conduzir a uma revisão em baixa da pensão, nos termos previstos no artigo 70.º (neste sentido, v. o Acórdão n.º 433/2016) —, antes de recorrer a uma medida, a redução definitiva da retribuição, que tem por pressuposto a irreversibilidade da incapacidade de trabalho. Acresce que esta possibilidade, pese embora excecional na ordem da legalidade, é a mais comum na ordem da realidade: no mercado de trabalho, a remuneração paga pelo empregador é a contrapartida do contributo do trabalhador para a produção da empresa ou organização à qual se encontra adstrito. Se a produtividade do trabalhador é reduzida, a título permanente, pelo facto de este ter adquirido uma incapacidade parcial, a tendência natural é para que essa desvalorização se venha a refletir de modo negativo na sua retribuição; assim é porque o montante desta corresponde tendencialmente ao valor de mercado da prestação de trabalho integral. Na verdade, a lei parte do princípio de que não é exigível que o empregador — para o qual o valor do trabalho corresponde à sua utilidade produtiva e o qual responde pela eficiência da sua organização — remunere o trabalhador para além da sua prestação laboral. Não admira, pois, que a lei permita a acumulação entre a remuneração e a pensão por incapacidade, por um lado, e entre esta e a pensão de reforma, por outro; na generalidade dos casos, implicando o infortúnio laboral a redução dos proveitos do trabalho e, por essa via, a deterioração da carreira contributiva, a pensão por incapacidade desempenha a sua função normal de reparação da perda de capacidade de ganho.
Mas se é assim — cabe perguntar — por que razão se admite a acumulação das prestações em causa, mesmo na eventualidade, seguramente invulgar, mas que a própria lei admite como possível, de o trabalhador vir «a auferir retribuição superior à que tinha antes do acidente» (artigo 51.º, n.º 1)? A resposta é a de que não se pode razoavelmente inferir do facto de o trabalhador auferir retribuição mais elevada do que aquela que tinha antes da ocorrência do infortúnio, que não sofreu qualquer dano laboral, ou seja, qualquer redução permanente da sua capacidade de ganho. A retribuição mais elevada pode dever-se a inúmeros fatores, como o esforço acrescido do trabalhador, a rentabilização de capacidades latentes, a aquisição de novas competências ou a materialização de oportunidades de mercado ─ fatores que em nada infirmam a presunção de que, ceteris paribus, o trabalhador obtém um ganho reduzido por comparação com uma situação hipotética em que não tivesse sofrido infortúnio laboral.
É certo que podem ocorrer situações em que o trabalhador recebe a pensão por incapacidade, apesar de não ter perdido efetivamente capacidade de ganho. Simetricamente, podem ocorrer casos em que o trabalhador, parcialmente incapacitado em virtude de acidente de trabalho, vê o seu vínculo laboral cessar por qualquer razão que lhe não é imputável ─ v.g., verificação do termo de contrato de trabalho a termo certo (artigo 344.º do Código do Trabalho) ou despedimento por extinção de posto de trabalho (artigo 367.º ss.) ─, e não consegue, de facto, encontrar emprego para a sua capacidade residual de trabalho; nestes casos, a pensão por incapacidade permanente parcial é insuficiente para reparar o dano laboral efetivamente sofrido pelo sinistrado.
Estas possibilidades existem por força da própria natureza do instituto da reparação por infortúnio laboral, o qual — ao contrário do instituto da responsabilidade civil — não promove uma justiça individual, orientada para o caso concreto, mas uma justiça geral, orientada para o caso médio ─ o que se revela, desde logo, no facto de a incapacidade ser determinada de acordo com uma tabela e de a reparação ser tarifada. Todo o sistema se baseia no postulado da convergência tendencial, determinada pela lógica de funcionamento do mercado laboral, entre a capacidade de ganho e a capacidade de trabalho, sem prejuízo das infinitas possibilidades abertas pela diversidade e a aleatoriedade da vida. A permissão incondicional de acumulação, estabelecida nos n.ºs 1 e 2 do artigo 51.º do RAT, repousa naturalmente nessa premissa.
Os pressupostos em que assenta este regime não se verificam quando o trabalho é prestado, não em condições de mercado, mas no universo normativo, relativamente diverso, do serviço público. No âmbito deste, a presunção de que, independentemente do valor da retribuição auferida, há um dano laboral a reparar, não tem razão de ser; não tem porque, como vimos, os acidentes e as doenças em serviço não produzem, em princípio, uma perda de capacidade de ganho, em virtude das características próprias do emprego público. Com efeito, o tratamento de todos os trabalhadores como iguais perante a lei justifica a adoção de regimes de acumulação diferentes no domínio do trabalho comum e em funções públicas. E se é verdade que assiste razão ao requerente quanto refere que «há trabalhadores em funções públicas submetidos, em matéria de acidentes de trabalho e doenças profissionais, ao Código do Trabalho e à LAT» ─ veja-se o artigo 2.º, n.º 4, do RAS ─, trata-se de uma solução de caráter excecional, que delimita negativamente a regra de que o RAS se aplica aos trabalhadores em funções públicas (artigo 2.º, n.º 1), solução esta porventura fundada em razões de ordem diversa das que temos vindo a considerar e cuja apreciação da constitucionalidade, em todo o caso, não integra o objeto do pedido.
Às diferenças decisivas que ressaltam da comparação entre trabalhadores sujeitos ao regime comum e em funções públicas ─ e com base nas quais se pode afirmar que a lei trata os grupos que integram o par comparativo como iguais do ponto de vista das vantagens patrimoniais atribuídas ─, importa acrescentar que não é idêntica a posição das entidades responsáveis pelo pagamento das pensões. No âmbito do regime comum, a responsabilidade recai sobre entidades seguradoras, remuneradas através de prémios pagos pelos empregadores ao abrigo do regime de seguro obrigatório; consequentemente, se o trabalhador parcialmente incapacidade, beneficiário de uma pensão que visa compensar a sua perda de capacidade de ganho, não vier a sofrer qualquer perda de rendimentos do trabalho, são os próprios empregadores, no gozo da sua autonomia privada, a suportarem os encargos da redundância. Pelo contrário, no âmbito dos infortúnios laborais em funções públicas ─ em que é afastado o princípio do seguro obrigatório (artigo 26.º, n.º 2, da Lei n.º 4/2009, de 29 de janeiro [RPS]) ─, quer a remuneração dos trabalhadores, quer as pensões por incapacidade permanente, são financiadas exclusivamente através de verbas públicas, nomeadamente receitas fiscais, sendo certo que as entidades empregadoras públicas suportam os encargos daquelas pensões e que o Orçamento do Estado «responde» subsidiariamente pela insuficiência dos recursos afetos a esse fim (artigo 22.º, n.º 3, do RPS). Deste ponto de vista, a proibição de acumulação entre a pensão por incapacidade e a parcela correspondente da retribuição ─ e, de modo derivado, entre aquela e a totalidade da pensão por aposentação ─ destina-se a acautelar a racionalidade da despesa pública neste domínio.
Resta, por tudo quanto se disse, concluir que as normas constantes da alínea b) do n.º 1 e dos n.ºs 3 e 4 — quanto a este último, no segmento em que remete para aquelas — do artigo 41.º do Decreto-Lei n.º 503/99, de 20 de novembro, na redação dada pelo artigo 6.º da Lei n.º 11/2014, de 6 de março, não violam o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da Constituição.
III. Decisão
Pelo exposto, o Tribunal Constitucional decide não declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas constantes da alínea b) do n.º 1 e dos n.ºs 3 e 4 — quanto a este último, no segmento em que remete para aquelas normas — do artigo 41.º do Decreto-Lei n.º 503/99, de 20 de novembro, na redação dada pelo artigo 6.º da Lei n.º 11/2014, de 6 de março.
Lisboa, 21 de novembro de 2017 - Gonçalo Almeida Ribeiro - Maria José Rangel de Mesquita - Maria de Fátima Mata-Mouros (com declaração) - Pedro Machete (com declaração) - João Pedro Caupers - Lino Rodrigues Ribeiro (com declaração) - Fernando Vaz Ventura - José Teles Pereira (vencido nos termos da declaração junta) - Joana Fernandes Costa (vencida nos termos da declaração junta) - Catarina Sarmento e Castro (vencida, nos termos da declaração de voto junta) - Maria Clara Sottomayor (vencida, nos termos da declaração anexa) - Claudio Monteiro (vencido, nos termos da declaração anexa) - Manuel da Costa Andrade
DECLARAÇÃO DE VOTO
Voto a decisão de não inconstitucionalidade das normas objeto de fiscalização, mas não acompanho a fundamentação do presente acórdão.
Considero que o conteúdo essencial do direito fundamental dos trabalhadores em funções públicas à assistência e à justa reparação quando vítimas de acidente de trabalho ou doença profissional, consagrado no artigo 59.º, n.º 1, alínea f), da Constituição, não é restringido pelas normas objeto de fiscalização, diante da solução global que resulta do Regime Jurídico dos Acidentes em Serviço e das Doenças Profissionais no âmbito da Administração Pública, onde se contemplam, em especial, as garantias do direito de ocupação efetiva e da intangibilidade da remuneração (artigo 23.º, n.os 3 e 4), o que assume uma natureza compensatória da proibição de acumulação irrestrita da pensão por incapacidade com a remuneração correspondente ao trabalho para o qual o trabalhador ficou incapacitado ou com a totalidade da pensão por aposentação nos termos explanados na declaração de voto do Conselheiro Pedro Machete que, neste ponto, acompanho.
Assegurado que não existe violação do direito fundamental à justa reparação previsto no artigo 59.º da Constituição, e sendo o regime aplicável aos trabalhadores em funções públicas, entendido na sua globalidade, diferente do regime aplicável aos restantes trabalhadores, não é possível comparar um aspeto específico e parcelar da sua aplicação – pois tal juízo será necessariamente incompleto. Porque se está perante situações objetivamente diferentes, a comparação de soluções normativas colocada à apreciação do Tribunal Constitucional não comporta a aplicação do princípio da igualdade.
Maria de Fátima Mata-Mouros
DECLARAÇÃO DE VOTO
Voto a decisão e acompanho, em larga medida, a fundamentação, em especial no tocante às origens e evolução do instituto da assistência e reparação em caso de acidente de trabalho e, bem assim, quanto à natureza do direito fundamental correspondente.
Considero, no entanto, que a resposta ao pedido de fiscalização exigia fundamentalmente indagar da compatibilidade com a Constituição da diferença de tratamento legalmente prevista no artigo 41.º do regime aplicável aos trabalhadores em funções públicas (Decreto-Lei n.º 503/99, de 20 de novembro, adiante referido como “RAS”) por comparação com o que se passa no âmbito do regime comum (cfr. o artigo 51.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro – Lei dos Acidentes de Trabalho, adiante referida como “LAT”).
Com efeito, a reparação da incapacidade permanente do trabalhador sinistrado concretiza-se, em ambos os regimes, numa pensão por incapacidade fixada segundo regras comuns, conforme decorre das remissões feitas nos artigos 34.º, n.ºs 1 e 4, e 38.º, n.º 5, do RAS. As condições de atribuição e o modo de calcular o respetivo montante não foram questionados pelo requerente. Ora, é a pensão atribuída e calculada nos termos legais que repara o dano laboral qua tale (cfr. o artigo 48.º, n.º 2, da LAT), tal como constitucionalmente exigido. A este direito à justa reparação – de que beneficiam tanto os trabalhadores em funções públicas como os trabalhadores do setor privado que tenham sofrido um dano laboral em consequência de um acidente de trabalho – tem o Tribunal reconhecido uma natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias (cfr. o Acórdão n.º 612/2008).
O artigo 41.º do RAS, na redação dada pela Lei n.º 11/2014, de 6 de março, afasta o artigo 51.º da LAT apenas enquanto o trabalhador sinistrado continuar em funções públicas. Caso o mesmo se aposente, e se venha a empregar no setor privado, pode cumular a sua (nova) remuneração com o valor da pensão ou pensões pagas pela Administração (sem prejuízo das regras de acumulação próprias dos respetivos regimes). Mas essa eventualidade já se localiza fora do âmbito de aplicação do artigo 41.º do RAS, valendo para a mesma o disposto no citado artigo 51.º. Ou seja, a grande diferença da solução prevista no RAS relativamente ao regime comum verifica-se, assim – e apenas –, no que respeita aos trabalhadores privados que continuam a trabalhar para o empregador ao serviço do qual ocorreu o acidente de trabalho ou a doença profissional: enquanto estes podem cumular a pensão com a remuneração, conforme previsto no artigo 51.º da LAT; os trabalhadores em funções públicas sinistrados que continuem a trabalhar para a Administração Pública não têm idêntica possibilidade, por força do artigo 41.º do RAS.
Para além de razões financeiras – o empregador privado não paga a pensão, mas pagou o prémio do seguro obrigatório, enquanto a pensão por incapacidade do trabalhador em funções públicas é suportada diretamente pela Caixa Geral de Aposentações (nos termos dos artigos 5.º, n.º 3, e 34.º do RAS e 21.º da Lei n.º 4/2009, de 29 de janeiro), sem que tenha sido pago qualquer “prémio” –, existem duas outras razões que, da perspetiva dos próprios trabalhadores, afastam o caráter arbitrário e ilegítimo da compressão do direito à reparação dos trabalhadores em funções públicas – compressão essa que se traduz na impossibilidade de fazer valer autonomamente e na totalidade o direito à pensão perante a entidade devedora – determinada pelo artigo 41.º do RAS:
(i) O direito de ocupação efetiva em funções compatíveis com o respetivo estado (v. o artigo 23.º, n.º 3, do RAS; no setor privado, e não obstante a previsão do artigo 155.º, n.º 1, da LAT, a efetivação do dever de ocupação efetiva depende da existência na organização do empregador de tarefas compatíveis, pois de outro modo o contrato de trabalho caduca);
(ii) A intangibilidade da remuneração auferida no momento do sinistro (v. o artigo 23.º, n.º 4, do RAS; no setor privado, e não obstante a previsão do artigo 157.º, n.º 2, da LAT, a única garantia do trabalhador que possa continuar a trabalhar para o empregador ao serviço do qual ocorreu o acidente ou a doença é a de que a sua retribuição «nunca é inferior à devida pela capacidade restante» – cfr. o n.º 3 do mesmo preceito).
Estas duas garantias – as quais, ao afastarem os riscos de diminuição da retribuição atual a que se encontram expostos os trabalhadores sinistrados do setor privado, assumem uma natureza compensatória e permitem reequilibrar as soluções globais a considerar –, em articulação com a aludida razão financeira – que, por sua vez, não é alheia a interesses públicos constitucionalmente relevantes –, justificam as diferentes possibilidades no tocante à acumulação de pensões dos trabalhadores em funções públicas e dos trabalhadores do setor privado.
Por outro lado, a previsão de tais garantias decorre de opções legislativas quanto à conformação do direito à justa reparação por acidente de trabalho, a que são alheias quaisquer diferenças estruturais entre o trabalho em funções públicas e no setor privado. Do ponto de vista constitucional, nada impede que a solução legal geral daquela reparação em relação aos trabalhadores em funções públicas não contemple as duas aludidas garantias e, consequentemente, se reconduza, no que às acumulações diz respeito, ao regime comum consagrado no artigo 51.º da LAT. Do mesmo modo, a Constituição também não proíbe que, mesmo encontrando-se garantidos o direito de ocupação efetiva e a intangibilidade da remuneração relativamente aos trabalhadores em funções públicas, o legislador admita a acumulação irrestrita, tal como prevista no artigo 41.º do RAS, antes da modificação introduzida pela Lei n.º 11/2014, atentas as possibilidades e capacidades neste domínio reconhecidas e exigidas aos empregadores públicos. Com efeito, uma vez garantido o conteúdo essencial do direito à justa reparação, cabe ao legislador determinar a solução globalmente mais justa e conveniente, relevando para o efeito, em especial, a definição da responsabilidade pelo financiamento e a avaliação das possibilidades organizatórias dos empregadores, públicos ou privados, e não tanto o modo de estruturação da atividade dos trabalhadores ao seu serviço. Isto sem prejuízo, naturalmente, de as especificidades de certas atividades – em si mesmas consideradas, e não necessariamente ou apenas por serem exercidas em regime de emprego público – poderem exigir e justificar desvios às regras gerais. Mas essa é uma ponderação que também caberá ao legislador fazer, tendo em conta as funções concretamente em causa.
Pedro Machete
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei a decisão, discordando, porém, da fundamentação que a suporta, no que se refere ao parâmetro da «justa reparação».
A posição que obteve maioria considera “que os trabalhadores da Administração Pública, em virtude das características próprias do emprego público, não sofrem, normalmente, qualquer redução da capacidade de ganho quando vítimas de infortúnio laboral que os deixa parcialmente incapacitados; por outras palavras, no emprego público não se verifica, em princípio, dano laboral, nos casos de incapacidade permanente parcial”. O acidente de trabalho não produz qualquer dano laboral porque a lei garante a intangibilidade da retribuição, ou seja, “a perda definitiva de capacidade de trabalho não tem qualquer consequência no estatuto remuneratório do sinistrado; este continua, ainda que venha a ocupar funções diversas e a beneficiar de horário de trabalho reduzido (nos termos do n.º 3 do artigo 23.º), a manter a totalidade da retribuição e todas as regalias correspondentes à categoria que integra e à posição remuneratória que ocupa». Conclui-se, assim, que é por essa razão que o artigo 41.º, n.º 1, alínea b), do RAS, na versão que resultou da Lei n.º 2011/2014, suspende o pagamento da pensão por incapacidade: sendo o pressuposto do direito a esta a existência de um dano laboral, não faz sentido que a mesma seja paga em circunstâncias - aquelas que caracterizam a relação jurídica de emprego público - que impedem a produção desse dano».
Nesse entendimento, a manutenção da “remuneração” auferida à data do acidente tem uma função reparadora do dano laboral, substituindo a pensão a que o sinistrado teria direito caso tivesse cessado a relação de emprego público. Não se deve, porém, perder de vista que a remuneração cumpre função diferente: constitui a contrapartida económica da prestação de trabalho. As prestações de valor pecuniário que um sinistrado com determinada capacidade residual continua a auferir no emprego público são devidas pelo desenvolvimento continuado da sua atividade laboral. Ou seja, a causa determinante da retribuição é o trabalho prestado, ainda que em funções compatíveis, e não a reparação do dano laboral.
Mesmo que se admita que a retribuição não assenta numa lógica essencialmente sinalagmática, a prevalência da função predominantemente compensatória ou indemnizatória do dano laboral – a que o acórdão faz referência - desvirtua a teleologia do conceito de retribuição constitucionalmente tutelado (artigo 59.º, n.º 1, alínea a), da CRP). A retribuição de base, mais do que retribuir o trabalho prestado, representa a posição hierárquica ocupada pelo trabalhador da Administração Pública numa determinada categoria, carreira ou cargo: «a remuneração base é o montante pecuniário correspondente ao nível remuneratório da posição remuneratória onde o trabalhador se encontra na categoria de que é titular ou do cargo exercido em comissão de serviço» (artigo 150.º, n.º 1 da LGTFP). A remuneração está assim referenciada à titularidade de uma determinada categoria e ao respetivo posicionamento remuneratório do trabalhador.
Ora, como o acidente de trabalho não tem por consequência a extinção ou diminuição da categoria que o sinistrado havia adquirido na carreira em que está inserido, a manutenção da remuneração auferia tem subjacente a não discriminação salarial fundada em acidente de trabalho. O que se pretende é que a capacidade residual decorrente de acidente de trabalho não seja à partida fator de diferenciação de tratamento remuneratório entre trabalhadores inseridos na mesma categoria e carreira. Se a remuneração é referenciada mais à categoria do que à prestação de trabalho, não há motivo racional e objetivo que justifique alteração do valor da remuneração em consequência do acidente de trabalho.
O acidente de trabalho de que resulte incapacidade permanente para o trabalho habitual ou incapacidade de ganho produz sempre um dano laboral cuja reparação é constitucionalmente tutelada. O direito à justa reparação por acidente de trabalho é um direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, que está consagrado na alínea f) do n.º 1 do artigo 59.º da CRP. Não obstante o legislador ordinário dispor de uma margem de liberdade de conformação não despicienda na concreta conformação do direito à justa reparação, é um direito de conteúdo determinável, abrangido pelo regime dos direitos, liberdades e garantias, designadamente pelo princípio da aplicação direta.
Portanto, o problema que se coloca é o de saber se a proibição de acumulação da pensão de invalidez com a remuneração do trabalho constitui uma compressão injustificada do direito à justa reparação. O bem jurídico abrangido e protegido pelo preceito constitucional que prevê o direito à justa reparação é a integridade económica ou produtiva do trabalhador. O âmbito de proteção constitucional desse direito fundamental pode ser afetado em vários níveis: (i) supressão total da capacidade de trabalho e de ganho, em caso de morte; (ii) redução da capacidade de trabalho, em caso de lesão ou perturbação funcional incapacitante para o trabalho habitual; (iii) e redução da capacidade de ganho, em caso de diminuição da capacidade geral de ganho do trabalhador.
As normas impugnadas – extraídas do artigo 41.º, n.º 1, alínea b), e nºs 3 e 4 do Decreto-Lei n.º 503/99, de 20 de novembro, na redação introduzida pelo artigo 6.º da Lei n.º 11/2014, de 6 de março – versam sobre a acumulação de pensões de invalidez com rendimentos de trabalho. O artigo 65.º da Lei de Bases do Sistema de Segurança Social - Lei n.º 4/2007, de 16 de janeiro – remeteu para a lei a definição dos «termos e condições de acumulação de pensões com rendimentos de trabalho». No campo das indemnizações por acidentes de trabalho, a referida Lei n.º 11/2014 veio acrescentar às proibições de acumulação já existentes, a proibição de acumulação da pensão por incapacidade permanente parcial com a parcela da remuneração correspondente à redução permanente da capacidade de ganho, permitindo apenas a acumulação da pensão por incapacidade permanente parcial com a pensão de aposentação ou reforma na parte em que esta excede aquela.
A proibição de acumulação da pensão de invalidez com a remuneração do trabalho é uma medida legislativa que não interfere na constituição do direito, mas apenas no seu exercício: a pensão de invalidez é calculada, mas não é auferida enquanto se mantiver a relação de emprego público. Na medida em que impossibilita a fruição total ou parcial do bem constitucionalmente protegido – a reparação do dano laboral – constitui uma restrição ao direito fundamental. O direito não é eliminado porque pode ser exercido na parte em que excede a remuneração ou quando cessar o vínculo de emprego público; mas é diminuído ou suspenso se tais condições não se verificarem. Do ponto de vista do seu titular, a proibição de acumulação produz efeitos ablativos da pensão de invalidez; do ponto de vista da Administração, diminui as obrigações que a existência do direito fundamental lhe impunha.
Ora, o fim visado pela proibição de acumulação da pensão de invalidez com a remuneração do trabalho é acautelar a sustentabilidade financeira da segurança social e da CGA. A Lei n.º 11/2014, de 6 de março, que alterou o preceito questionado, não deixa dúvidas quanto a esse objetivo: (i) introduzem-se alterações na fórmula de cálculo da pensão de aposentação paga pela CGA, de que resultou diminuição significativa do respetivo montante; (ii) proíbe-se o exercício de funções públicas por aposentados, reformados e reservistas, exceto quando lei especial o permita ou, por razões de interesse público excecional, sejam autorizadas; (iii) para esses casos excecionais, prevê-se a suspensão da pensão; (iv) revogam-se todas as normas que estabelecem acréscimos de tempo de serviço para efeitos de aposentação da CGA; (v) proíbe-se a acumulação da pensão de invalidez com a remuneração do ativo. Estas e outras medidas constantes do mesmo diploma têm subjacente a preocupação de assegurar a sustentabilidade do sistema público de pensões. Não há outro motivo que possa justificar o conjunto de medidas introduzidas por aquele diploma.
Ora, a proibição de acumulação da pensão com a remuneração só é constitucionalmente válida se for estabelecida para salvaguardar outros valores e interesses constitucionalmente protegidos e não se mostrar inadequada, desnecessária ou desproporcional (artigo 18.º, n.º 2 da CRP). Neste contexto, para garantir a sustentabilidade do sistema de pensões, não parece desrazoável proibir a acumulação da pensão de invalidez com a remuneração correspondente à categoria detida à data do acidente nos casos em que não há transferência da responsabilidade pela reparação dos danos laborais. Sendo a remuneração e a pensão de invalidez financiadas exclusivamente por verbas públicas, a restrição não é inadequada, desnecessária ou desproporcional à obtenção desse interesse constitucionalmente relevante (artigo 63.º da CRP). Para o sinistrado, o sacrifício não parece excessivo, porque continua a auferir a remuneração correspondente à categoria que detinha, não obstante a perda de ganho causada pela incapacidade parcial; para o interesse público da estabilização financeira da CGA e da solidariedade intergeracional, com vista a assegurar a sustentabilidade do sistema de pensões, as vantagens são evidentes.
A perspetiva aqui adotada tem implicações no plano da vinculação do legislador: enquanto a posição que sustenta o acórdão não autoriza o legislador a conceder a acumulação da pensão de invalidez com a remuneração de emprego público, porque considera que o acidente de trabalho não produz dano laboral, a que aqui se defende, num contexto financeiro diferente, não exclui a possibilidade do legislador tornar a autorizar a acumulação.
Lino José Batista Rodrigues Ribeiro.
DECLARAÇÃO DE VOTO
1. Votámos vencidos quanto à decisão de não inconstitucionalidade por entendermos que as normas objeto do pedido de fiscalização (as resultantes do artigo 41.º, n.º 1, alínea b) e n.ºs 3 e 4 do Decreto-Lei n.º 503/99, de 20 de novembro, na redação introduzida pelo artigo 6.º da Lei n.º 11/2014, de 6 de março), ao estabelecerem uma proibição de acumulação com a remuneração da totalidade da prestação (fixada) por acidente de trabalho, nos casos de incapacidade permanente parcial, implicam uma violação direta do artigo 59.º, n.º 1, alínea f) da Constituição, no segmento em que aí se consagra o direito dos trabalhadores a uma “[…] justa reparação, quando vítimas de acidente de trabalho […]”. Consubstancia-se essa violação na suspensão parcial do direito ao percebimento pelo trabalhador da prestação indemnizatória por acidente de trabalho, cuja integralidade, nos termos resultantes da aplicação dos critérios legais de quantificação, concretamente quanto às prestações por incapacidade permanente parcial, expressa o conceito constitucionalmente operante de justa reparação.
Procuraremos fundamentar, muito sucintamente, esta asserção de desconformidade constitucional.
2. Como dissemos, referem-se as normas questionadas pelo Provedor de Justiça a situações de acumulação entre a prestação indemnizatória por incapacidade permanente parcial – prestação decorrente dos critérios legais – e a remuneração (e respetivos equivalentes daquela e desta, nos casos dos n.ºs 3 e 4 do artigo 41.º), envolvendo o direito à reparação por acidente de trabalho no contexto em que este se forma e adquire individualidade — o da relação protagonizada pelo sinistrado e a entidade responsável pelo ressarcimento, no quadro consequencial desencadeado pela ocorrência do acidente de trabalho. Ora, neste contexto originário (ou jurisgénico) do próprio direito à reparação, encontramo-nos no cerne da garantia constitucional decorrente do artigo 59.º, n. 1, alínea f) do texto constitucional, plano no qual a força da injunção de que a reparação por acidente de trabalho seja justa, postula um âmbito de proteção – de garantia – de primeira linha e, por isso, particularmente intenso. Para compreender o exato sentido desta afirmação, tenha-se presente que este âmbito é diverso daquele (que poderemos qualificar como de segunda linha) convocado em contextos subjetivos derivados (mediatos em relação ao processo de formação da reparação) como sejam – para dar o exemplo da situação em causa no Acórdão n.º 676/2016 – os que conduzem a uma ponderação, posterior, da intangibilidade, ou não, das prestações indemnizatórias por acidente de trabalho face a credores do titular do direito a essas prestações (face ao sinistrado). Note-se, todavia, que mesmo neste (outro) contexto de proteção mais relativizada, este Tribunal não tem deixado de afirmar – e sublinhamos ser esse o sentido do Acórdão n.º 676/2016 (cfr. o respetivo ponto 2.2.2. e os itens V a VIII do sumário) – a subsistência de uma forte densidade axiológica do direito à reparação indemnizatória por acidente de trabalho, em termos de poder sustentar-se – ou de não poder excluir-se –, mesmo na ponderação aí convocada, a viabilidade de situações de total impenhorabilidade (de intangibilidade aos credores do sinistrado) dessas prestações indemnizatórias.
3. Está em causa, com efeito, na intencionalidade que subjaz ao trecho que alude a justa reparação no artigo 59.º, n. 1, alínea f) da Constituição – intencionalidade logo apreensível através do elemento vocabular – a consideração teleológica da vertente indemnizatória no quadro da proteção aos trabalhadores vítimas de acidente laboral e de doença profissional. Em tal plano, a mencionada injunção constitucional, refere-se ao elemento através do qual se alcança, em primeira linha, a supressão do dano, quando a intervenção através da assistência ao sinistrado (o direito deste afirmado no início da alínea f)) não esgota (não reverte) esse dano, não recolocando o trabalhador/sinistrado no estado de incolumidade prévio ao evento infortunístico. A ideia de justeza na reparação referencia, pois, o plano indemnizatório, quando este é concretizado por equivalência, com o sentido que subjaz ao artigo 566.º, n.º 1 do Código Civil. É que, se o direito do trabalhador a ser assistido em virtude de acidente de trabalho sinaliza, primordialmente, uma resposta ao evento infortunístico visando a supressão do dano no quadro de uma reparação por reconstituição natural – que não deixa de configurar uma forma de reparação indemnizatória, pois visa (ou também visa) “[…] reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação” (artigo 562.º do Código Civil) –, a ideia de reparação justa assume um sentido projetivo mais amplo, sugerindo fortemente visar, essencialmente, o conteúdo da resposta ao acidente traduzido na reparação indemnizatória em dinheiro, aqui considerada na vertente – e estamos a usar as formulações do Decreto-Lei n.º 503/99 que dão conteúdo, na situação aqui em causa, ao direito à reparação (cfr. respetivo artigo 4.º, n.º 4) – de “[i]ndemnização em capital ou pensão vitalícia correspondente à redução na capacidade de trabalho ou de ganho no caso de incapacidade permanente” (alínea b) do n.º 4 do referido artigo 4.º).
Ora, sendo neste plano que atua a proibição de acumulação aqui em causa, é por via desta limitação quantitativa (rectius, redução, suspensão parcial do direito à prestação) de um valor com inegável cariz tabelar, previamente fixado para aquela concreta incapacidade, que se gera a situação que consideramos constitucionalmente desvaliosa. Vale como desvalor neste plano – ou seja: como efeito antagónico do valor promovido pela obrigação constitucional de promover uma justa reparação – a diminuição ou suspensão de um direito cujo conteúdo patrimonial, no seu exato elemento quantitativo, já se formou em todos os seus elementos na esfera do titular, adquirindo, por isso mesmo, a natureza de reparação devida àquela pessoa naquela situação, com base em critérios legais pré-definidos (com uma sugestiva proximidade à ideia de liquidação forfaitaire do dano visado). É assim que a garantia, constitucionalmente sedeada, de uma reparação justa no caso de acidente de trabalho, não pressupondo (no plano constitucional direto) valores determinados ou métodos de cálculo específicos, pressuponha, todavia, que o resultado obtido por via da incidência das regras existentes, seja alcandorado à categoria de reflexo valorativo da norma constitucional, e, nesse sentido, seja protegido na sua integralidade, enquanto expressão dos critérios legais de compensação desse dano em concreto.
3.1. Aliás, contrariamente ao que resulta da fundamentação exarada no Acórdão, ao fazer equivaler a manutenção da remuneração anterior ao acidente (salvaguardada, relativamente a estes trabalhadores, no artigo 23.º, n.º 4 do Decreto-Lei n.º 503/99) à reconstituição natural, quanto ao dano que (em caso de acidente de trabalho) se expresse numa incapacidade parcial permanente, a avaliação percentual, com referência à Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, não deixa de apresentar um âmbito suficientemente amplo, para incluir a modificação negativa da capacidade ativa futura, aferida no quadro de determinada relação laboral, projetada em múltiplas facetas. Mesmo aquelas que, mantendo incólume a remuneração anterior ao acidente, operam alterações com expressão negativa na ulterior prestação de trabalho, tornando-a mais difícil e penosa, menos adaptada de um ponto de vista ergonómico, menos passível de progressão, mais incerta, etc. Ou seja, a avaliação percentual do dano referido à incapacidade parcial permanente não deixa de visar, mesmo aqui, modificações pejorativas da relação do individuo com a prestação de trabalho, independentemente da potencialidade hipotética que apresentassem para se refletir no montante remuneratório (hipótese aqui sempre salvaguardada pelo artigo 23.º, n.º 4 do Decreto-Lei n.º 503/99). Desconsiderando todas estas dimensões (ou projeções) do dano infortunístico, apesar de conaturais ao conceito de reparação, a orientação sufragada pela maioria acaba por reconduzir — e, com isso, por reduzir — o direito fundamental à justa reparação ao direito a não sofrer um prejuízo salarial em razão do acidente, fazendo-o, além do mais, com um alcance de tal modo transversal e absoluto que não permite sequer assegurar diferente resposta para os casos em que, por força da natureza ou características próprias da prestação laboral concretamente desenvolvida e do específico tipo de lesão que originou a incapacidade, a integralidade da retribuição surja como o correspetivo do esforço acrescido realizado pelo trabalhador de modo a obter o mesmo resultado — situação que, todavia, não deixa de acautelar no plano da caracterização do dano laboral no âmbito do setor privado.
4. Claro que uma reconstrução teleológica da natureza da reparação por acidentes de trabalho – é esse o caminho trilhado pelo Acórdão do qual dissentimos –, fazendo descaso da ligação da ideia de reparação a uma perspetiva indemnizatória, que, todavia, no contexto do artigo 59.º, n. 1, alínea f) da Constituição, nos parece intuitiva, pode (essa reconstrução teleológica) justificar reduções de montantes compensatórios legalmente parametrizados, subtraindo-os à “nova” finalidade encontrada para a ideia de “justa reparação”. É este o sentido da expressão “função garantística”, de indisfarçável pendor eufemístico, na economia argumentativa da posição que fez vencimento, relativamente à expressão de uma ideia assistencialista na resposta ao infortúnio laboral. Porém, não entendemos que seja essa a mensagem normativa que subjaz à intencionalidade da alínea f) do n.º 1 do artigo 59.º da Constituição. E, note-se, não se trata aqui de excluir a relevância da perspetiva assistencialista (se preferirmos, garantística ou essencialmente garantística) no quadro do direito infortunístico laboral. Este elemento, todavia, não vale como fundamento para atuar, reduzindo-os, sobre os montantes indemnizatórios legalmente fixados para as incapacidades geradas pelos acidentes de trabalho. Vale, aí sim, por via do seu quadro constitucional de referência, sedeado no artigo 63.º, n.º 3 (“[o] sistema de segurança social protege os cidadãos na doença, velhice, invalidez, viuvez e orfandade, bem como no desemprego e em todas as outras situações de falta ou diminuição de meios de subsistência ou de capacidade de trabalho”), dando sentido, por exemplo, à criação do Fundo de Acidentes de Trabalho, previsto no artigo 283.º, n.º 5 do Código do Trabalho e demais legislação deste decorrente, a que o Decreto-Lei n.º 142/99, de 30 de abril, deu concretização.
5. São estes, em suma, os fundamentos que nos levam a não acompanhar o entendimento maioritário do Tribunal.
J. A. Teles Pereira / Joana Fernandes Costa
DECLARAÇÃO DE VOTO
Fiquei vencida, não subscrevendo o presente Acórdão, nem quanto à sua decisão, nem quanto à sua fundamentação.
Apesar de a posição maioritária, que não integro, ter votado no sentido da não inconstitucionalidade das normas, a fundamentação apresentada não obteve maioria (como resulta das demais declarações de voto, designadamente dos que acompanharam o sentido da decisão) – o que é perfeitamente possível por não ser exigível uma maioria de fundamentação em acórdãos do Tribunal Constitucional em que se decida no sentido da não inconstitucionalidade da norma, bastando uma maioria quanto à decisão, ainda que ancorada em fundamentações não coincidentes. Quanto a este aspeto, a minha posição enquadra-se num conjunto maioritário formado por aqueles que consideram que o artigo 59.º, n.º 1, alínea f), consagra a justa reparação do dano laboral, que reveste natureza compensatória.
Assim, no meu caso, por um lado, afastei-me do sentido da decisão, pois votei a inconstitucionalidade das normas constantes da alínea b) do n.º 1 e dos n.ºs 3 e 4 – quanto a este último, no segmento que remete para aquelas – do artigo 41.º do Decreto-Lei n.º 503/99, de 20 de novembro (Regime Jurídico dos Acidentes em Serviço e das Doenças Profissionais no Âmbito da Função Pública), por violação do princípio da justa indemnização constante da alínea f) do n.º 1, do artigo 59.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), que estabelece o direito de todos os trabalhadores a assistência e justa reparação, quando vítimas de acidente de trabalho ou de doença profissional.
E, por outro lado, em virtude do sentido da decisão que acolhi, afastei-me, necessariamente, da fundamentação escolhida pelo relator, pelas razões adiante expendidas, e, também, por concordar, em boa parte, com os argumentos apresentados a propósito da violação do artigo 59.º da CRP, pelo Senhor Provedor de Justiça.
Considero que as normas em apreciação violam o direito fundamental de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias previsto no mencionado preceito constitucional já que, ainda que se admita uma margem de conformação por parte do legislador relativamente à reparação por acidente de trabalho ou doença profissional, esta não pode ultrapassar as limitações decorrentes das normas constitucionais, anulando ou inviabilizando o ressarcimento efetivo e justo do dano sofrido em virtude de acidente de trabalho ou doença profissional, que o artigo 59.º, n.º 1, alínea f), estabelece.
A meu ver, as normas visadas pelo presente recurso de constitucionalidade impedem a acumulação de pensões pagas em consequência de um acidente profissional ou de uma doença profissional, com a “parcela da remuneração correspondente à percentagem de redução permanente da capacidade geral de ganho do trabalhador” (alínea b) do n.º 1), ou com a “com a pensão de aposentação ou de reforma (...) na parte em que estas excedam aquela” (n.º 3), assim como a acumulação da pensão por morte com a pensão de sobrevivência. O seu conteúdo, ao obstar sempre a esta acumulação, afasta a reparação específica e autónoma do dano laboral, que é consumida por via do seu abatimento na remuneração ou pensão conservada. Esta neutralização elimina a restauração per se do dano que tal pensão visava, razão pela qual é violadora da garantia constitucional de justa reparação.
Resulta do que se diz que me afasto da ideia de que o acidente de trabalho (ou doença laboral), no caso dos trabalhadores da Administração Pública, não produz, mercê das características próprias do emprego público, qualquer dano laboral, por estar garantida a intangibilidade da remuneração, contrariamente ao que defende o relator (veja-se o que refere a Declaração de voto do Conselheiro Lino Ribeiro, ainda que ambos cheguemos a conclusão diferente quanto à inconstitucionalidade da solução). Não só o dano laboral existe, como está subjacente à sua reparação o risco derivado do trabalho prestado.
Em meu entender, o ressarcimento do dano laboral implica mais do que a mera garantia de uma retribuição, sendo esta a contrapartida económica da prestação de trabalho, já que aquela compensação pretende cobrir, para além da perda de salário, outras vertentes que vão além dele, designadamente, a perda de capacidade de ganho potencial, ou de oportunidade profissional, como, por exemplo, a diminuição da capacidade de progressão na carreira, ou impedimentos à transição para algumas carreiras especiais incompatíveis com a capacidade de trabalho residual resultante do infortúnio laboral (como reconhece o Acórdão), ou, em geral, a capacidade de evoluir profissionalmente; ou a maior dificuldade no exercício das suas funções, nomeadamente, em virtude da menor adaptação ergonómica, dela resultando, por exemplo, maior penosidade no cumprimento de funções; ou a impossibilidade de auferir alguns suplementos remuneratórios, por incapacidade para o exercício de tarefas de modo a aceder-lhes; ou a diminuição da satisfação profissional, nomeadamente, por sujeitar o sinistrado a mudança no trabalho habitual. Assim, a minha posição acompanha a daqueles que entendem que, em muitos casos, não ficará o dano laboral suficientemente ressarcido, per se, quando se pretende que o salário percebido já engloba a sua compensação, não seguindo aqueles que entendem que o cariz indemnizatório está suficientemente assegurado pela retribuição integral, e afastando-me, mais ainda, dos que, acompanhando o relator, sustentam que, não sofrendo o trabalhador qualquer diminuição salarial, e sendo esta uma prestação meramente assistencial/garantística, este não tem direito a compensação indemnizatória alguma, visto inexistir dano laboral quando seja percebida pelo trabalhador, por inteiro, no setor público, a remuneração a que este anteriormente tinha direito: segundo esta posição, não estaria em causa “indemnizar o trabalhador, mas assegurar a sua subsistência, posta em risco pela perda de capacidade para efetivar a contrapartida da sua retribuição”, ponto de vista de que não posso deixar de me afastar.
Apesar de chegar a conclusão diversa relativamente à constitucionalidade das normas aqui em apreciação, incluo-me na maioria que rejeitou a conceção de que a prestação devida terá um pendor meramente garantístico/assistencialista, e não compensatório, desligado de um cariz indemnizatório, que apenas pretende assegurar a subsistência ao sinistrado de acidente de trabalho ou afetado por doença profissional. A meu ver, uma tal conceção, que se pretendeu essencialmente suportada no direito infraconstitucional, poderia, além do mais, abrir a porta a uma desvalorização deste direito até a um limite assistencial mínimo, ao sabor das conjunturas, bem longe dos limites constitucionalmente exigidos de que esteja prevista uma justa (e efetiva) indemnização. Aliás, discordei, desde logo, da necessidade de a fundamentação assumir uma classificação doutrinal deste direito - que o relator rotulou como direito fundamental a prestações normativas, não pacífica, do meu ponto de vista, potencialmente comprometedora -, e que, chamando um argumento histórico, identificasse aqui um instituto jurídico-laboral tutelando interesses com dignidade constitucional, discordado eu que se construísse a proteção constitucionalmente devida essencialmente a partir de análise do direito infraconstitucional (veja-se o ponto 9), com toda a volatilidade subjacente. Isto embora o texto ainda afirme que o que “se tornou explicitamente indisponível é a função de assistência e de reparação do trabalhador que a legislação vigente em matéria de infortúnio laboral vinha assegurando”, mas vindo, depois, no correr da fundamentação, a cingir a sua essência ao carácter de pura assistência, e não reparador.
Ora, o direito fundamental constitucionalmente consagrado é que define as balizas dentro de cujos limites se dará a conformação legal possível, e, na alínea f) do n.º 1, do artigo 59.º, a Constituição atribui, de modo inequívoco, um cariz inegavelmente indemnizatório a este direito fundamental do trabalhador, que visa reparar os efeitos da lesão, o que, a meu ver, deixa de ser efetiva e suficientemente assegurado pela solução que vem impugnada. Não basta, assim, que exista uma qualquer proteção legal de modo a satisfazer a prescrição constitucional, e, seguramente, não o satisfaz uma visão garantística/assistencialista do direito em causa, que fizesse com que, neste caso, como sucede noutras pensões que não estas, a pensão fosse apenas ditada pela “situação de necessidade económica”, presumida “a partir do facto — postulado pelo direito laboral — de que aquele que trabalha por conta de outrem carece da retribuição da prestação de trabalho subordinado para assegurar a sua subsistência e dos seus dependentes”.
Afastado o carácter meramente garantístico/assistencialista, e assumida a função indemnizatória caracterizadora deste direito fundamental, tal deveria significar, de acordo com o meu entendimento, que aqueles que defendessem a existência de um direito a uma justa reparação não deveriam deixar de aceitar que, muitas vezes, a justa indemnização do dano laboral que a Constituição exige não é efetivamente atingida mediante a mera garantia da integridade do salário. No entanto, esta posição acabou por ser minoritária.
Por último, sempre me afastaria da fundamentação apresentada quando se tecem considerações genéricas sobre algumas consequências do regime em apreciação, umas que não subscreveria, outras que entendo não poderem ser afirmadas pelo Tribunal Constitucional sem mais demonstração, como parte das afirmações conclusivas que a seguir se transcrevem: “De tal regime resultava que os trabalhadores em funções públicas viam a sua capacidade de ganho normalmente ampliada na eventualidade de sofrerem um acidente de trabalho ou doença profissional, situação que: (i) desvirtuava a função do instituto da reparação por infortúnio laboral, que é a de compensar a perda de capacidade de ganho do sinistrado; (ii) tendia a privilegiar, do ponto de vista patrimonial, os trabalhadores atingidos relativamente aos não atingidos por infortúnio; (iii) abria caminho a uma exposição imprudente ao perigo profissional, por força do efeito de «moral hazard» gerado por essa vantagem; e, em consequência, (iv) punha em causa a sustentabilidade financeira do sistema.” Catarina Sarmento e Castro
DECLARAÇÃO DE VOTO
Dissenti da decisão proferida por entender que o recurso devia ser procedente e a norma questionada declarada inconstitucional, com força obrigatória geral, por violação do direito dos trabalhadores, quando vítimas de acidente de trabalho ou de doença profissional, a justa reparação, conforme consagrado no artigo 59.º, n.º 1, alínea f), da Constituição.
1. Metodologia
Em primeiro lugar, a metodologia utilizada no Acórdão que fez vencimento assenta, sobretudo, em argumentos históricos e exegéticos deduzidos do direito infraconstitucional, descurando a questão central que é a de saber qual o conteúdo do direito dos trabalhadores a justa reparação, consagrado no artigo 59.º, n.º 1, alínea f), da CRP. Esta questão, como problema jurídico-constitucional, não pode ser resolvida com recurso a argumentos sistemáticos retirados do direito infraconstitucional, pois, precisamente, o que se questiona, é saber se o direito infraconstitucional viola, ou não, a Constituição. As deduções lógico-conceituais efetuadas pelo Acórdão, para justificar o juízo de não inconstitucionalidade, padecem do vício de inversão metodológica, na medida em que é o direito infraconstitucional que é usado como instrumento para interpretar a norma constitucional e não a norma constitucional, como lei fundamental paramétrica, que é utilizada para aferir da constitucionalidade ou inconstitucionalidade do direito ordinário. Ou seja, usando-se o direito ordinário e a sua «ressonância histórica», para determinar o conteúdo da norma constitucional e o âmbito de proteção do direito fundamental nela consagrado, vicia-se, a priori, o resultado do processo decisório: tudo se passa como se fosse o direito infraconstitucional, usado para interpretar o conteúdo do direito fundamental que lhe vai servir de parâmetro de apreciação, a determinar a constitucionalidade de si mesmo. Estamos assim – embora se reconheça a qualidade do texto do Acórdão e a dificuldade das questões tratadas – perante um raciocínio circular, nos termos do qual o direito ordinário é usado, simultaneamente, como instrumento de interpretação do direito constitucional e como resultado dessa interpretação, pois este raciocínio há de necessariamente implicar a decisão final de conformidade do direito infraconstitucional à Constituição.
2. Conteúdo do direito à assistência e justa reparação
Ao tempo do aditamento do direito dos trabalhadores a uma justa reparação ao n.º 1 do artigo 59.º da CRP – Revisão Constitucional de 1997 – já o instituto da responsabilidade civil e o conceito de dano tinham evoluído para o alargamento crescente dos casos de responsabilidade civil objetiva e para a densificação e abertura do conceito de dano, considerado o centro do instituto da responsabilidade civil e um reflexo das várias dimensões – física e psíquica, corporal e mental, afetiva e existencial – da pessoa humana, que eram ignoradas pelo citada «ressonância histórica» da legislação dos acidentes de trabalho, a qual, partindo de uma conceção de pessoa humana muito distinta da conceção subjacente à Constituição de 1976, construiu o conceito de dano laboral de uma forma meramente assistencialista incompatível com o direito a uma reparação justa previsto na Constituição (artigo 59.º, n.º 1, al. f), da CRP). À luz da Constituição, o âmbito do conceito de dano laboral está relacionado com a dignidade da pessoa humana e com a tutela constitucional dos seus direitos fundamentais – os direitos ao livre desenvolvimento da personalidade, à integridade física, psíquica e moral, o direito à saúde, o direito ao trabalho – e não apenas com um mínimo de sobrevivência dos trabalhadores e das suas famílias. A este propósito, veja-se como o conceito de acidente de trabalho, definido pela referida legislação, é obsoleto por incluir apenas a lesão física e não a lesão psíquica, restrição que veio a ser corrigida pela doutrina e pela jurisprudência (cf. Júlio Gomes, O Acidente de trabalho, Coimbra, 2013, pp. 33-34). A sobrevivência, no essencial, do regime de acidentes de trabalho anterior à Revolução de 25 de abril de 1974 explica-se não pela sua perfeição ou adequação, mas por uma inércia histórica, com a qual a Revisão Constitucional do 1997, consagrando o direito dos trabalhadores a uma justa reparação, quis romper. Dada a teleologia e o espírito que presidiu à Constituição – baseados na dignidade da pessoa humana, na solidariedade e na igualdade – não se pode considerar, como entendeu o Acórdão que fez vencimento, que o legislador da revisão constitucional de 97, quando consagrou o direito à justa reparação dos trabalhadores, no artigo 59.º, n.º 1, al. f) da CRP, tinha apenas por objetivo garantir o patamar de proteção dos trabalhadores que era já conferido pela legislação ordinária. Pelo contrário, o legislador constitucional visou, com a tipificação do direito, alargar o seu conteúdo, remetendo, como indicia a expressão «justa reparação», para o princípio da reparação integral do dano presente no direito civil, na múltipla dimensão que lhe é reconhecida e que a jurisprudência dos tribunais comuns tem desenvolvido. Dano, como se tem defendido na doutrina civilista, é toda a ofensa de bens ou interesses alheios protegidos pela ordem jurídica e é apenas em função do dano que a responsabilidade civil realiza a sua finalidade essencialmente reparadora ou reintegrativa. A atribuição de uma indemnização ao lesado tem na sua génese a eliminação ou atenuação de uma situação desfavorável que se verificou pela violação de direitos, bens jurídicos ou vantagens protegidas pelo direito, destinando-se a proporcionar ao lesado a situação de que este usufruiria se o facto que originou os danos não se tivesse verificado. Tradicionalmente, os danos subdividem-se em duas categorias – danos patrimoniais e danos não patrimoniais – consoante sejam ou não suscetíveis de avaliação pecuniária. Os primeiros incidem sobre interesses de natureza material ou económica e refletem-se no património do lesado, enquanto os segundos se reportam a valores de ordem espiritual, ideal ou moral. Os danos patrimoniais, de acordo com o artigo 564.º, n.º 1 do Código Civil, abrangem os danos emergentes, enquanto perda patrimonial, e os lucros cessantes, referindo-se estes últimos aos ganhos que o lesado deixou de obter por causa do facto ilícito, mas a que ainda não tinha direito à data da lesão. No artigo 564.º, n.º 2, a lei prevê a indemnização dos danos futuros, ou seja daqueles que ainda não se verificaram à data da fixação da indemnização, mas que sendo previsíveis, a lei considera indemnizáveis, tendo os tribunais ao seu dispor fórmulas matemáticas para os calcular, mas acabando, na prática, por recorrer a critérios de equidade, em que têm em conta a perda de oportunidades profissionais, a diminuição, efetiva e potencial, de rendimentos, o período de tempo de vida ativa, a possibilidade de promoção e de mudança de emprego, etc. Os danos não patrimoniais são aqueles que afetam a personalidade, o corpo ou a vida, na sua dimensão complexa – biológica e mental, física e psíquica – e que, pela sua gravidade, merecem a tutela do direito, nos termos do artigo 496.º, n.º 1, do Código Civil. Embora estes não integrem a categoria do dano laboral, tal como foi historicamente moldada e o legislador ordinário tenha liberdade de conformação a este propósito, deve entender-se que está incluída, no conceito constitucional de «justa reparação», a realização profissional, enquanto valor psicológico e mental, até porque a distinção entre estas duas categorias – danos patrimoniais e não patrimoniais – é cada vez mais questionável, havendo uma zona em que necessariamente se conectam ou sobrepõem. É o caso do dano biológico, que, enquanto dano corporal ou à saúde traduzido na diminuição psicossomática da pessoa, afeta as atividades laborais e assume um carácter dinâmico, agravando-se com o avançar da idade da pessoa lesada, produzindo, necessariamente, consequências na mensuração do dano não patrimonial e do dano patrimonial, pois, para além da perda de rendimentos, retira à pessoa a sensação de utilidade e de produtividade, podendo acarretar a perda de auto-estima e do sentido da vida. Na verdade, os direitos ou bens jurídicos ligados à afirmação pessoal, social, afetiva e profissional do indivíduo "valem" hoje, à luz de uma nova consciência social, mais do que no passado. Assim, à medida que com o progresso económico e social se diversificam os riscos de lesão, os tribunais tendem a interpretar extensivamente as normas que tutelam os direitos de personalidade, evolução que deve também verificar-se no domínio dos acidentes de trabalho e que a Constituição quis refletir no artigo 59.º, n.º 1, alínea f), da CRP.
3. Deve ainda sublinhar-se, a propósito da norma cuja constitucionalidade foi questionada – o artigo 41.º do Decreto-Lei n.º 503/99, de 20 de novembro, na redação dada pelo artigo 6.º da Lei n.º 11/2014, de 3 de março – que a ratio do novo regime da proibição de acumulação das prestações por incapacidade permanente parcial com a parcela da remuneração correspondente à redução permanente da capacidade de trabalho, no âmbito da Administração Pública, tal como decorre da Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 171/XII/2.ª, terá sido apenas a sustentabilidade financeira da Caixa Geral de Aposentações, uma vez que o legislador não procede, na citada Exposição de Motivos, a qualquer justificação jurídica para a alteração legislativa introduzida e esta não se enquadra na pretendida convergência de regimes, até porque os trabalhadores do setor privado beneficiam da possibilidade de acumulação (cf. artigo 51.º, n.º 1, da LAT, que afirma o princípio de que «[a] pensão por incapacidade permanente não pode ser suspensa ou reduzida mesmo que o sinistrado venha a auferir retribuição superior à que tinha antes do acidente, salvo em consequência de revisão da pensão», agora vedada no emprego público.
4. Para justificar o conteúdo minimalista do dano laboral sofrido pelos funcionários públicos (pelo facto de continuarem a receber a totalidade da remuneração, nos termos do artigo 23.º, n.º 4, do RAS), dão-se por evidentes, no Acórdão que fez vencimento, asserções retiradas de uma comparação entre o regime jurídico da função pública e o do setor privado, que estão longe de ser óbvias, revelando, pelo contrário, o direito positivo e o direito vivente, que as distinções conceituais – entre carreira no setor público e categoria no setor privado e entre dano laboral e dano civil –, com que se fundamentou a constitucionalidade da norma questionada, não são rigorosas de um ponto de vista jurídico, o que não deixou de ser assinalado no Acórdão através do advérbio “normalmente”.
4.1. Diferença entre carreira (trabalhadores em funções públicas) e categoria (trabalhadores em regime comum)
Afirma o Acórdão que fez vencimento que se verifica uma diferença estrutural entre o emprego público e a relação laboral sujeita ao regime comum, que justifica que a incapacidade permanente parcial dos trabalhadores com vínculo de emprego público não diminua a sua capacidade de ganho, pois estes exercem, normalmente, as suas funções em carreiras de conteúdo funcional genérico e extenso, o que permite que o trabalhador desempenhe funções compatíveis com a sua capacidade de trabalho residual e seja avaliado e promovido no exercício de tais funções, enquanto que os trabalhadores do setor privado veem a sua prestação laboral ser conformada, de forma mais rígida, pelo contrato de trabalho celebrado entre o empregador e o trabalhador, sofrendo, portanto, um dano laboral acrescido.
Para além de a distinção entre trabalhadores privados e trabalhadores públicos se ter esbatido com a disseminação da contratação laboral pelo Estado e demais pessoas coletivas públicas, não se pode afirmar que o trabalhador que exerce funções públicas não sofra perdas do ganho potencial. É que há profissões em que o trabalhador recebe uma parte da remuneração em subsídios e em horas extraordinárias. Se, por razões de saúde pu em virtude de um acidente, deixar de poder fazer trabalho noturno ou por turnos, ou horas extraordinárias, o seu rendimento global (apesar da manutenção da remuneração base) pode baixar drasticamente. Em relação às carreiras especiais da função pública, em que a prestação do trabalhador está circunscrita a determinadas funções e em que os trabalhadores não são promovidos automaticamente, pelo decurso dos anos, mas apenas mediante avaliações de resultados ou desempenho, há que equacionar que o trabalhador acidentado ou com doença profissional, que padece de uma incapacidade parcial, pode não conseguir atingir os resultados exigidos na avaliação do desempenho, sendo ultrapassado por outros trabalhadores no acesso a determinadas posições ou funções, ficando, portanto, diminuída a sua capacidade de ganho mesmo que mantenha a remuneração vigente à data do acidente. Por outro lado, os trabalhadores do regime comum, que estão autorizados legalmente a acumular a pensão por incapacidade permanente parcial com a totalidade da retribuição, ainda que esta seja superior à auferida à data do acidente, podem não sofrer qualquer perda de retribuição efetiva, por estar proibida na lei ou em convenções coletivas, nem perdem, na prática, o posto de trabalho, por não ser possível ao empregador extingui-lo, devido à proteção que os trabalhadores encontram nas convenções coletivas e na prática judiciária. Por último, os argumentos do privilégio dos trabalhadores atingidos relativamente aos não atingidos por acidentes de trabalho e do efeito de «moral hazard», que alegadamente seria potenciado pelo regime de acumulação, assentam numa ideia pré-concebida, sem fundamento empírico, que esquece que a maioria dos trabalhadores que sofrem acidentes de trabalho não conhecem a lei, antes de sofrerem o acidente, de forma a poderem moldar o seu comportamento por ela, e que, conforme ilustram as estatísticas oficiais, é na indústria e na construção civil que acontecem os acidentes mais graves e o maior número de mortes de trabalhadores, sendo as causas desses infortúnios, com frequência, as deficientes condições em que o trabalho é exercido e a falta de segurança, por culpa dos empregadores que não cumprem as suas obrigações.
4.2. Diferença entre dano laboral e dano civil e conteúdo do direito à justa reparação
É certo que, como salienta a doutrina (Júlio Gomes, O acidente de trabalho, ob. cit., p. 263), na sua génese histórica, nos vários sistemas de responsabilidade civil objetiva de reparação de acidentes de trabalho, a reparação era limitada a uma parte do dano que era frequentemente tabelado, sendo o dano indemnizável inferior àquele cuja reparação teria sido possível à luz da responsabilidade subjetiva tradicional. Contudo, adequados critérios de interpretação da norma constitucional, que consagra o direito dos trabalhadores a uma justa reparação, conduzem ao resultado interpretativo segundo o qual a Constituição tem por referência uma noção de dano mais ampla do que a tradicional no sistema de acidentes de trabalho. A interpretação das normas constitucionais deve fazer-se de acordo com os critérios hermenêuticos gerais (elemento gramatical, teleológico e sistemático), indicando, desde logo, o elemento literal, através da expressão «justa reparação», uma remissão para o instituto da responsabilidade civil e para o princípio da reparação integral do dano. Por outro lado, os argumentos teleológico e sistemático de interpretação exigem que o intérprete proceda a uma leitura unitária da Constituição, que tenha em conta todas as suas normas e princípios, nomeadamente, a dignidade da pessoa humana, o princípio-base do Estado de Direito (artigo 1.º da CRP) e que serve de critério de interpretação/delimitação do conteúdo dos direitos fundamentais (cf. Jorge Reis Novais, A Dignidade da Pessoa Humana, vol. II, pp. 27 e ss; Benedita Mac Crorie, «O princípio da dignidade da pessoa humana na Constituição da República Portuguesa de 1976», in Jornadas nos Quarenta Anos da Constituição da República Portuguesa, Universidade Católica. Porto, 2017, pp.105-112 e Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 144/2004 e 101/2009). Sendo assim, a norma constitucional paramétrica, que consagra o direito dos trabalhadores a uma justa reparação, não pode deixar de ter por pressuposto uma noção de pessoa humana que abrange a vida do trabalhador no seu todo e na sua complexidade ou modo singular e único de ser, e que, portanto, impõe o direito dos trabalhadores à indemnização da totalidade dos danos por si sofridos, em caso de doença profissional ou de acidente de trabalho, de acordo com o paradigma da responsabilidade civil. A expressão «capacidade de ganho» encontra a sua origem no direito civil e não pode deixar de ter o mesmo significado, quer em relação ao dano causado por acidente de trabalho ou doença profissional sofrido pelos trabalhadores da Administração Pública, quer em relação aos trabalhadores do setor privado. Da jurisprudência civilística colhe-se a tradição de a perda de capacidade de ganho ser classificada como um dano patrimonial futuro, que abrange, de acordo com um juízo de probabilidade, a perda de oportunidades profissionais, como promoções, compensação por horas extraordinárias, a valorização profissional, a mudança de profissão, a subida de escalão, etc. Não pode, portanto, afirmar-se, como fez a tese vencedora, que a perda da capacidade de ganho do trabalhador em funções públicas fique reparada com o princípio da manutenção da remuneração auferida no momento do infortúnio e que a norma constitucional convocada apenas exige que o legislador assegure a sua subsistência, não assumindo uma função indemnizatória ou de tornar indemne o/a trabalhador lesado/a. A perda de capacidade de ganho não pode analisar-se apenas na diminuição imediata e atual da retribuição, mas repercute-se no património do lesado, para o futuro, durante o período laboral ativo e durante toda a sua vida. É que o facto de o/a trabalhador/a continuar a prestar serviço e a receber a remuneração, por inteiro, não elimina o dano. Tem que se ter em conta que a incapacidade permanente parcial vai refletir-se no esforço maior que será necessário despender para fazer a mesma tarefa, o que implicará menos disponibilidade de tempo para dedicar ao trabalho (por exemplo, em horas extraordinárias ou num segundo emprego ou outras prestações de serviço) e um esgotamento das suas reservas biológicas, que se repercutirá necessariamente no seu património e nas consequências económicas da lesão. Ainda que não seja possível determinar com exatidão a extensão desses danos e ainda que sejam diferentes consoante a profissão em causa, sempre terão estes de ser reparados de acordo com a equidade, por força do direito fundamental constitucionalmente consagrado a uma justa reparação, pelo que a revogação da norma que permitia a acumulação da pensão por incapacidade permanente com a totalidade da remuneração põe em causa este direito dos trabalhadores da função pública, de uma forma que viola o princípio da proporcionalidade ínsito no artigo 18.º, n.º 2, da CRP. A jurisprudência do Tribunal Constitucional já tem admitido que o conteúdo do direito consagrado no artigo 59.º, n.º 1, al. f), da CRP abrange os danos futuros e não pode estar condicionado a um critério de contenção de custos (cf. Acórdão n.º 147/2006). Compreende-se que o sistema carecesse de reforma e que o método tarifado de cálculo das incapacidades e das pensões não fosse o mais adequado, por não ter em conta o caráter concreto e individual da avaliação do dano, mas a proibição de acumulação da retribuição com a pensão, por razões de sustentabilidade do sistema, sem a construção legal de uma solução alternativa que reparasse a perda de capacidade de ganho potencial (ou a perda do rendimento virtual), ultrapassa os limites do constitucionalmente admissível à liberdade de conformação do legislador, por estar em causa um direito fundamental análogo a um direito, liberdade e garantia (cf., entre outros, Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 34/2008, 612/2008, 16/12); na doutrina: Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4.ª edição revista, Coimbra, 2007, p. 770; Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2.ª edição, 1161), intimamente relacionado com a dignidade e a qualidade de vida dos trabalhadores, bem como com a sua integridade corporal, psíquica e moral. Este direito tem, assim, uma dimensão jusfundamental essencial ao Estado de Direito, e a sua restrição, através da eliminação da reparação da capacidade de ganho potencial, não respeita os critérios de proporcionalidade a que recorre a jurisprudência do Tribunal Constitucional para aferir da constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais.
5. Princípio da igualdade
Em relação à aplicação do parâmetro do princípio da igualdade, entendo que o grupo populacional afetado pelas leis dos acidentes de trabalho e pela lei dos acidentes de serviço é o das pessoas que sofrem doenças profissionais e/ou são vítimas de um acidente de trabalho, que lhes provoca uma incapacidade permanente parcial, sendo irrelevante se o empregador é o Estado ou outra entidade pública, ou um empregador privado, e em concreto, qual o regime do contrato de trabalho (retribuição, modos e consequências de cessação do contrato, etc.) de cada pessoa vitimada por acidente de trabalho, portadora de incapacidade permanente parcial. Por imposição do princípio da igualdade, todos os trabalhadores devem beneficiar de um regime idêntico no que diz respeito à reparação por acidentes de trabalho. Entendo, por isso, não serem pertinentes as considerações comparativas feitas pelo Acórdão que fez vencimento a propósito do princípio da igualdade. Por outro lado, a visão do princípio da igualdade enquanto mera proibição do arbítrio, válida para a generalidade das questões jurídico-constitucionais, não deve ser aplicada no domínio dos direitos dos trabalhadores, em que a Constituição permite ao Tribunal Constitucional um controlo mais intenso, que tem sido realizado pela jurisprudência constitucional através de um princípio da igualdade proporcional.
Maria Clara Sottomayor
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido por entender, na linha do que argumentou o Provedor de Justiça, que as normas em apreciação violam o disposto na alínea f) do n.º 1 do artigo 59.º da Constituição da República Portuguesa, por não assegurarem plenamente o direito à justa reparação do dano laboral, bem como o princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º, na medida em que introduzem uma diferenciação injustificada entre trabalhadores do setor público e do setor privado.
Claudio Monteiro