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ACÓRDÃO Nº 153/2015

Processo n.º 911/14

2.ª Secção

Relator: Conselheiro João Cura Mariano

 

 

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional

 

 

Relatório

Por sentença do 1.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Gondomar, proferida a 5 de dezembro de 2013, foram os arguidos A. e B. condenados pela prática, em coautoria material, de um crime de exploração ilícita de jogo, previsto e punido pelo artigo 108.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 422/89, de 2 de dezembro, na redação introduzida pelo Decreto-Lei n.º 10/95, de 19 de janeiro, o primeiro, na pena de 7 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 ano e, cumulativamente, na pena de multa de 100 dias, à taxa diária de 7,00, perfazendo o montante total de 700,00, e a segunda, na pena de 4 meses de prisão, substituída por igual número de dias de multa, e na pena de 65 dias de multa, ambas à taxa diária de 5,00, perfazendo a pena única de 185 dias de multa, no montante total de 925,00.

 

Os arguidos interpuseram recurso para o Tribunal da Relação do Porto que, por acórdão de 2 de julho de 2014, julgou procedente o recurso da arguida B., absolvendo-a do crime que lhe era imputado, e negou provimento ao recurso do arguido A., mantendo nesta parte a decisão recorrida.

 

O arguido A. recorreu então para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), nos seguintes termos:

«A., Recorrente melhor identificado nos autos à margem referendados, não se conformando com o douto Acórdão proferido a fls... dos autos, vem dele interpor Recurso, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo (artigo 78º, n.º 4 da L.T.C), para o

EGRÉGIO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL ao abrigo do disposto no art. 70º, n.º 1, al. b) da L.T.C. - inconstitucionalidade suscitada durante o processo, mormente, em sede de motivação de Recurso interposto para o Venerando Tribunal da Relação do Porto,

Desde logo, por considerar o Recorrente que os arts. 4º, 108º e 115º do D.L. n.º 422/89, de 02 de dezembro, foram interpretados de forma inconstitucional na douta Sentença proferida em 1ª Instância, e ora confirmada pelo douto Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, por violação dos princípios da "liberdade individual" e da "proporcionalidade", designadamente, da norma constante no art. 18º da Constituição da República Portuguesa, e, bem assim, por clara violação do supra referido princípio da "legalidade", na vertente de "nullum crimen sine lege certa", logo, por violação do disposto no art. 29º da Constituição da República Portuguesa,

Porquanto, efetivada no sentido de se puder entender um qualquer jogo desenvolvido por máquina eletrónica, cujo resultado dependa exclusiva ou fundamentalmente da sorte, mas cujos limites máximos de "prémios" atribuir estejam já previamente definidos e delimitados e sejam do conhecimento dos utilizadores, consubstancia um jogo de fortuna ou azar.

Na verdade, deverá decidir-se pela inconstitucionalidade dos arts. 4º, 108º e 115º quando, no caso de estarmos perante um jogo em máquina eletrónica, o jogo em causa "habilite" o respetivo utilizador a algo de que, na sua vertente máxima, aquele tem já o prévia conhecimento e que, em caso de jogada premiada não poderá apostar de uma só vez, na tentativa de poder "dobrar" tal prémio, como sempre sucede num qualquer jogo de casino.

Isto porque, e ao contrário do que surge agora vertido no douto Acórdão da Relação do Porto, e que nem sequer tem fundamento fáctico, pois que não resulta da factualidade tida como provada (entendendo-se, assim, modestamente, que não poderia sequer fundar a convicção daquele Venerando Tribunal), por recurso à máquina dos autos não é possível utilizar todos os pontos ganhos numa qualquer jogada sucessiva, assim correndo o risco de perder tais pontos de uma só vez, na medida em que, e como melhor resulta do próprio Relatório Pericial da dita máquina, os pontos ganhos só são passíveis de ser utilizados na proporção de 1/2 ponto de cada vez, que alegadamente corresponderá a uma aposta única, e máxima possível, de 0,50 (cinquenta cêntimos) em cada jogada, e isto independentemente dos pontos que se possa haver ganho e se encontrem acumulados na respetiva janela digital.

Ademais, e contrariamente ao que surge agora vertido no douto Acórdão da Relação do Porto, o jogo ora em causa tem os prémios previamente definidos, não se entendendo como sequer se afigura possível e viável negar tal facto notório e patente, bastando para assim se concluir na factualidade tida como provada quando se enumeram os pontos que estarão identificados com recurso a números (1, 100, 200, 50, 5, 10, 2 e 20), quando se descreve o modo de funcionamento do jogo e o facto dos pontos a que se habilita o jogador oscilarem entre o 1 e 200, sendo assim patente que, apesar de uma qualquer possibilidade de acumulação de pontos (que tão pouco surge nos ditos factos provados), nunca os pontos acumulados, e destinados a posterior conversão em numerário, serão superiores àqueles 200, o que é desde sempre do conhecimento do respetivo utilizador, existindo, por isso, e conforme referido, uma predefinição e um prévio conhecimento dos "prémios" em causa no jogo e dos seus limites máximos.

Improcedendo, assim, porque totalmente desprovido de uma qualquer base, o argumento utilizado no douto Acórdão da Relação do Porto para fazer cair a inconstitucionalidade alegada e para se concluir por violado o princípio da legalidade.

No sentido da inconstitucionalidade que ora se invoca (e porque se desconhecem decisões, num ou noutro sentido, deste Egrégio Tribunal Constitucional), refere-se aqui o douto Acórdão do Venerando Tribunal da Relação do Porto de 21.05.2008 - proferido no Proc. n.º 2492/08-1, e acessível in www.dgsi.pt.

Sem conceder, considera, ainda, o Recorrente que o art. 43º do C.Penal foi, também ele, interpretado de forma inconstitucional na douta Sentença proferida em 1.ª Instância e ora igualmente confirmada nessa parte pelo douto Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, por violação dos arts. 18º e 9º da Constituição da República Portuguesa, porquanto efetivada no sentido de se poder entender a suspensão da execução, prevista no art. 50º do C.Penal, como qualquer uma das penas de substituição que aquele art. 43º impõe sejam aplicadas quando se decide pela condenação em medida inferior a 1 (um) ano de prisão.

Na verdade, deverá decidir-se pela inconstitucionalidade do art. 43º quando, no caso de aplicação de pena de prisão em medida inferior a 1 (um) ano, se interpretar no sentido de se decidir, ao invés do ali legalmente "imposto", não pela substituição da tal pena de prisão por pena de multa ou outra não privativa da liberdade, mas, pela suspensão da dita pena de prisão na sua execução.

Isto porque, sempre a aplicação daquele art. 43º do C.Penal só poderá ser afastada no caso de o cumprimento da pena ser exigido para evitar o cometimento futuro de crimes, o que "cairá" perante a não substituição de tal pena mas a sua suspensão na execução, facto claramente revelador da não necessidade do cumprimento de tal pena de prisão

 

Notificado para o efeito, com a advertência para a possibilidade de o recurso não ser conhecido quanto à interpretação dos artigos 4.º, 108.º e 115.º do Decreto-lei n.º 422/89, de 2 de Dezembro, devido à não coincidência entre o conteúdo da interpretação indicada no requerimento de interposição do recurso e aquela que foi sustentada na decisão recorrida, o Recorrente apresentou alegações, tendo formulado as seguintes conclusões:

«A. Deverá o Recurso interposto ser conhecido na sua "plenitude" e, como tal, ser apreciada a inconstitucionalidade apontada relativamente à interpretação dos artigos 4º, 108º e 115º do D.L. n.º 422/89, de 02 de dezembro, porque efetivada no douto Acórdão recorrido, como em 1ª Instância, no sentido propugnado.

B. Na verdade, e ainda que no douto Acórdão recorrido se alude e transcreva um outro douto Acórdão daquele Tribunal da Relação do Porto, de 07-05-2014, como melhor resulta de fls. 29 a 31, o "juízo" produzido no douto Acórdão ora recorrido é no sentido do que exatamente havia sido decidido em sede de Sentença recorrida, não resultando, por isso, a sustentação de um qualquer conteúdo concreto da interpretação indicada,

C. Sendo que, a referência que se faz quanto a não se estar perante um jogo com limites de prémios previamente definidos é tão somente a reprodução do referido douto Acórdão anteriormente proferido, e não a "pronúncia" expressa daquele Venerando Tribunal quanto à questão que lhe havia sido colocada,

D. Pronúncia essa que só surge em momento posterior a uma tal transcrição, a fls. 31, quando, já depois do fechar de "aspas", se diz que «Neste conspecto, resta concluir que a subsunção jurídica realizada na decisão recorrida se mostra conforme à estatuição legal e constitucional vigente e não ofende a jurisprudência consagrada no AFJ n.º 4/2010, não merecendo censura»,

E. Sendo assim patente que o que se sustenta no douto Acórdão recorrido é, tão somente, o que sustentou em sede de douta Sentença proferida em 1ª Instância, resultando daí patente a referida pré-delimitação dos prémios e os limites máximos dos mesmos, até porque ali se diz expressamente que a conclusão de que a máquina desenvolvia um jogo de fortuna ou azar sempre resulta das características e funcionalidades descritas nos pontos 4 a 8 da matéria provada.

F. Pelo que, sendo essa a matéria assente, e a que sustenta então a conclusão do Acórdão ora recorrido de que a máquina em causa desenvolve um jogo de fortuna ou azar, sempre temos que assim se considera uma máquina que, apesar de depender exclusiva ou fundamentalmente da sorte, tem, desde "ab initio", os limites máximos de "prémios" previamente definidos e delimitados e do conhecimento dos seus utilizadores.

G. Dos referidos pontos 4 a 8 da matéria provada, nos quais se "funda" o Acórdão ora recorrido para decidir como o fez, temos por assente que o plano de jogo tem 8 (oito) dos 64 (sessenta e quatro) led's identificados com números, os quais corresponderão então aos prémios a que um qualquer utilizador de habilita e que por aqueles são perfeitamente percetíveis em momento anterior à utilização da máquina em causa.

H. Donde, e porque, como referido, o Acórdão ora recorrido consubstancia a sua decisão por recurso às características da máquina em causa tal qual as mesmas resultam dos ditos pontos 4 a 8 da matéria provada, entende-se por verificada a coincidência entre o conteúdo da interpretação indicada no requerimento de interposição do recurso e aquela que foi sustentada na decisão recorrida,

I. Pois que, quanto ao jogo em si, às suas características, finalidades e modo de funcionamento, objetivamente o douto Acórdão ora recorrido nada diz, antes se fundando nos factos provados já referidos, tendo então interpretado os normativos em causa como em sede de 1ª Instância, logo, no sentido propugnado, devendo, por isso, ser conhecido o recurso interposto na sua plenitude.

J. Assim, e no que ao recurso em concreto se refere, sempre se dirá que o jogo desenvolvido pela máquina dos autos não poderia ser qualificado como um jogo de fortuna ou azar na medida em que, e desde logo, o valor "apostado" não tem uma qualquer influência numa qualquer esperança de ganho,

K. Encontrando-se os prémios a que cada utilizador se habilita previamente definidos e delimitados, não sendo dependentes, de uma qualquer forma, do valor gasto, sendo que, cada jogada tem, apenas e só, o preço de 0,50 (cinquenta cêntimos), não existindo, por isso, uma qualquer aposta mas apenas o pagamento do respetivo preço de utilização, tal qual sucede na máquina objeto do AFJ do STJ com o n.º 4/2010.

L. Ainda que se afigure possível creditar os pontos ganhos, e como resulta da factualidade provada, reiterada e "utilizada" pelo Acórdão recorrido, tal creditação apenas é possível à razão de um ponto de cada vez, o que corresponderá a 2 (duas) jogadas, sempre distintas entre si, encontrando-se assim, o seu utilizador a habilitar-se, simplesmente, aos prémios já definidos e identificados na máquina, e em nada dependentes do montante gasto, pois que, cada utilização/jogada custa tão somente 0,50 (cinquenta cêntimos).

M. Esta predefinição dos prémios, sem uma qualquer relação com o valor gasto ou acumulado, e o seu conhecimento por parte dos respetivos utilizadores, é concreta e clara na matéria provada, mormente aquela a que alude o Acórdão recorrido, sendo que da mesma, e ao contrário, não resulta sequer abordada uma qualquer possibilidade de dobrar os pontos, de os arriscar a todos numa só jogada, seja, de tudo ganhar ou tudo perder, como acontece num qualquer jogo de casino.

N. Donde, ao decidir como o fez, e nos termos em que o fez, a decisão recorrida decidiu pela qualificação enquanto jogo de fortuna ou azar de um jogo desenvolvido em máquina eletrónica, dependente da sorte e não da perícia do respetivo utilizador, destinado a atribuir prémios que se encontram já definidos e enumerados naquela própria máquina, logo, por todos conhecidos, e cujo funcionamento se limita à introdução de uma moeda, sendo que a cada 0,50 (cinquenta cêntimos) corresponderá então uma jogada.

O. Do exposto, temos que a utilização da não corresponde a um qualquer ato de jogar, além do que o jogo desenvolvido não se enquadra no normativo do art. 4º do D.L. nº 422/89, de 02 de dezembro, diferindo a máquina dos autos daquela que foi objeto de fixação de Jurisprudência, nos termos referidos, apenas no seu modo de utilização, mecânico versus eletrónico.

P. É diversa a Jurisprudência no sentido de que máquinas como a dos autos não consubstanciam jogos de fortuna ou azar, tendo a mesma sido referida pelo ora Recorrente quer perante o Tribunal de 1.ª Instância quer perante o Tribunal ora recorrido, os quais, ainda assim, e ao contrário do que deveria suceder, tão pouco sequer cuidaram de aferir e analisar uma tal Jurisprudência.

Q. É manifesto, no caso presente, a violação dos princípios da "liberdade individual" e da "proporcionalidade", designadamente, da norma constante no art. 18º da Constituição da República Portuguesa, e, bem assim, do princípio da "legalidade", na vertente de "nullum crimen sine lege certa", seja, do art. 29º da Constituição da República Portuguesa.

R. É inconstitucional a interpretação das normas constantes dos artigos 4º, 108º e 115º do D.L. n.º 422/89, de 02 de dezembro, efetivada nos autos, porque no sentido de se poder entender um qualquer jogo desenvolvido por máquina eletrónica, cujo resultado dependa exclusiva ou fundamentalmente da sorte, com os respetivos prémios já previamente definidos e delimitados e do conhecimento de todos os seus utilizadores, consubstanciam, ainda assim, um jogo de fortuna ou azar.

Sem conceder,

S. Porque condenado por um crime que prevê, cumulativamente, pena de prisão e multa, não houve lugar à ponderação do estatuído no art. 70º do C.Penal, motivo pelo qual, tendo-se então decidido pela aplicação de uma pena de 7 (sete) meses de prisão, deveria ter sido apreciada e decidida da substituição da mesma nos termos do preceituado no art. 43º do C.Penal, o que não sucedeu.

T. Pois que, se assim fosse, não se poderia haver decidido pela suspensão daquele pena, porquanto, uma tal suspensão não configura uma qualquer pena de substituição, resultando a sua aplicação da interpretação inconstitucional do art. 43º do C.Penal, para além de manifestamente contraditória,

U. Na medida em que, e porque a substituição da pena curta de prisão só poderá ser afastada se o cumprimento daquele pena se revelar como necessário para prevenir o cometimento de futuros crimes, é aquela mesma suspensão quem expressamente declara a inexistência dessa mesma necessidade, pois que a dita pena de prisão não é cumprida, antes sim, é cumprida a sua suspensão.

V. Sendo certo que, a suspensão de uma qualquer pena de prisão, efetivada nos termos do referido art. 50º do C.Penal, não poderá ser entendida como uma qualquer pena de substituição, pois que, e para além do que resulta da própria estrutura do nosso C.Penal,

W. Sempre, ao ser suspensa na sua execução, uma qualquer pena de prisão, continuará a existir, não sendo substituída, apenas suspensa, com o natural e consequente risco de poder mesmo vir a ser cumprida, caso não sejam observados os pressupostos definidos para a decretada suspensão, os quais, poderão mesmo consubstanciar deveres e proibições a impor ao condenado, numa clara limitação dos seus mais legítimos direitos enquanto cidadão, o que já não sucede nas referidas penas de substituição.

X. A pena de prisão aplicada ao Recorrente, e tal como se impõe da lei, e porque a sua execução não se revela necessária, lá está, deveria ter sido substituída nos termos do preceituado no art. 43º do C. Penal, deixando de existir e sendo substituída por uma outra pena não privativa da liberdade, como sejam, as preceituadas nos arts. 47º e 48º do C.Penal.

Y. O "instituto" da suspensão da execução da pena de prisão não configura uma qualquer pena autónoma e verdadeira, pois que a pena em causa é, sempre, a pena de prisão, mas cuja execução não se efetiva, porque suspensa,

Z. Sendo que, tal suspensão, e ao contrário do que sucede com uma qualquer pena de substituição - nas quais apenas haverá que cumprir a pena então decretada -, sempre "acarreta" toda uma série de condições, deveres, além do que, é ela própria, a pena de prisão, quem, a final, será de declarar extinta pelo cumprimento.

AA. A substituição da pena de prisão aplicada ao ora Recorrente, nos termos daquele art. 43º, apenas poderia ser afastada no caso de o seu cumprimento ser exigido para evitar o cometimento futuro de crimes, o que foi completamente afastado na decisão recorrida, atenta a decidida suspensão da pena na sua execução.

BB. Donde, é então manifesta, no caso presente, a violação dos artigos 18º e 9º da Constituição da República Portuguesa, porquanto a aplicação daquele art. 43º impõe a substituição da pena de prisão por uma outra não privativa da liberdade, o que não sucede no caso da pena suspensa, como supra referido, pois que tal pena, se não observados os pressupostos para a decidida suspensão, poderá mesmo vir a ser cumprida.

CC. É inconstitucional a interpretação da norma constante do artigo 43º do C.Penal, efetivada nos autos, porque no sentido de se poder entender a suspensão da execução, prevista no art. 50º do mesmo diploma legal, como qualquer uma das penas de substituição que aquele art. 43º impõe sejam aplicadas quando se decide pela condenação em medida não superior a 1 (um) ano de prisão.

Nestes termos, nos melhores de direito e com o sempre mui douto suprimento de V. Exas., sopesadas as conclusões acabadas de exarar, deverá ser dado provimento ao presente recurso e, por via disso, ser declarada, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade das normas constantes dos arts. 4º, 108º e 115º do D.L. n. º 422/89, de 02 de dezembro, quando interpretadas no sentido de que se poder entender um qualquer jogo desenvolvido por máquina eletrónica, cujo resultado dependa exclusiva ou fundamentalmente da sorte, com os respetivos prémios já previamente definidos e delimitados e do conhecimento de todos os seus utilizadores, consubstanciam, ainda assim, um jogo de fortuna ou azar, e, sem conceder, a inconstitucionalidade da norma constante do art. 43º do C.Penal, quando interpretada no sentido de que se poder entender a suspensão da execução, prevista no art. 50º do mesmo diploma legal, como qualquer uma das penas de substituição que aquele art. 43º impõe sejam aplicadas quando se decide pela condenação em medida não superior a 1 (um) ano de prisão, com o que, modestamente se entende, V. Exas. farão, como sempre, inteira e sã JUSTIÇA.»

 

O Ministério Público apresentou contra-alegações, que concluiu da seguinte forma:

«[]

17º Vejamos, então, o que se poderá aduzir relativamente ao recurso do interessado, sendo certo que o Ilustre conselheiro Relator, deste Tribunal Constitucional, não deixou já de devidamente salientar, por despacho de 15 de outubro de 2014 (cfr. fls. 410 dos autos):

Notifique para serem apresentadas alegações, nos termos do artigo 79º, da LTC, com a advertência de que deverão pronunciar-se sobre a possibilidade do recurso não ser conhecido, quanto à interpretação do art. 4º, 108º e 115º, do D.L. nº 422/89, de 2/12, devido à não coincidência entre o conteúdo da interpretação indicada no requerimento de interposição de recurso e aquele que foi sustentado na decisão recorrida.

18º Nas conclusões do seu requerimento de recurso para o Tribunal da Relação do Porto, o ora recorrente definiu, assim, a primeira questão de constitucionalidade, que agora pretende igualmente ver apreciada por este Tribunal Constitucional (cfr. fls. 263, 329 dos autos):

N. Por fim, de referir que, temos por inconstitucional a interpretação das normas contidas nos nºs 4º, 108º e 115º do D.L. nº 422/89, de 02 de dezembro, quando efetuada (como sucede no caso dos autos) no sentido de que um qualquer jogo desenvolvido por máquina eletrónica, cujo resultado dependa exclusiva ou fundamentalmente da sorte, mas cujos limites máximos de «prémios» a atribuir estejam já previamente definidos e delimitados e sejam do conhecimento dos utilizadores, consubstancia um qualquer jogo de fortuna ou azar.

O. Pois que, uma tal interpretação é claramente inconstitucional por violação dos princípios da «liberdade individual» e da «proporcionalidade», designadamente, da norma constante no artigo 18º da Constituição da República Portuguesa, e, bem assim, por clara violação do supra referido princípio da «legalidade», na vertente de «nullum crimen sine lege certa», logo, por violação do disposto no artigo 29º da Constituição da República Portuguesa (Neste sentido, cfr. Acórdão deste Venerando Tribunal da Relação do Porto de 21-05.2008, proferido no Proc. nº 2493/08-1, e acessível in www.dgsi.pt).

Ora, a formulação desta primeira questão é idêntica em ambos os requerimentos de recurso, muito embora mais desenvolvida no requerimento de recurso apresentado perante este Tribunal Constitucional (cfr. supra nº 15 das presentes contra-alegações).

Foi, pois, esta a primeira (e única) questão de constitucionalidade igualmente submetida à consideração do tribunal recorrido, o Tribunal da Relação do Porto, e que este teve, assim, de apreciar.

19º Não oferece, todavia, dúvidas, ao signatário, que esta interpretação não integrou a ratio decidendi do Acórdão recorrido e, nessa medida, não pode ser a interpretação que o ora recorrente entende contestar.

O Tribunal da Relação do Porto foi, com efeito, bastante explícito, quando referiu (cfr. supra nº 9 das presentes contra-alegações) (destaques do signatário):

Dispõe o art. 1º do Dec. Lei nº 422/89, de 2/12, com as alterações introduzidas pelo Dec. Lei nº 10/95, de 19/1, que «jogos de fortuna ou azar são aqueles cujo resultado é contingente por assentar exclusiva ou fundamentalmente na sorte».

E. conforme ressalta do preceituado no seu art. 3º, nº 1, a exploração e prática de tais jogos só é permitida nos casinos existentes nas zonas de jogo permanente ou temporário ou, fora deles, nas situações excecionais previstas nos arts. 6º a 8º, do citado diploma legal.

Relativamente ao tipo de jogos de fortuna e azar, regula o art. 4º nº 1 g) do citado diploma que, nos casinos, é autorizada a exploração, além do mais de jogos em máquinas que, não pagando diretamente prémios em fichas ou moedas, desenvolvam temas próprios dos jogos de fortuna ou azar ou apresentem como resultado pontuações dependentes exclusiva ou fundamentalmente da sorte.

Sendo certo que, in casu, existe divergência relativamente à classificação do tema do jogo que a máquina apreendida desenvolvia e se o mesmo pode ser integrado na densificação normativa correspondente a «jogos de fortuna e azar», é, porém, inquestionável que o art. 108º nº 1, do Dec. Lei nº 422/89, apenas comina pena de prisão até 2 anos e multa até 200 dias para quem fizer a exploração deste tipo de jogos, fora das condições e locais legalmente autorizados.

20º Mais adiante, o mesmo tribunal superior não deixou, igualmente, de destacar, a propósito do Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça nº 4/2010, de 8 de março de 2010 (cfr. supra nº 10 das presentes contra-alegações) (destaques do signatário):

Todavia, no caso em apreço nestes autos a máquina apresenta como resultado determinadas pontuações que dependem exclusivamente da sorte e que assumem o caráter de créditos que o jogador tanto pode utilizar para continuar a jogar como para reclamar o prémio respetivo.

Assim, mostra-se preenchida a previsão da última parte da alínea g) do nº 1 do citado artigo 4º, que define os tipos de jogos de fortuna ou azar, e não existe qualquer confusão com o tipo de máquinas em causa no AFJ nº 4/2010, que se reporta a prémios isolados proporcionados pelos sorteios, rifas e tômbolas, ou seja em que o jogo se esgota numa única ação sem possibilidade de continuação pois que, se o jogador quiser voltar a jogar terá que iniciar nova ação que, por sua vez, se esgota nessa jogada, e assim «o impulso para o jogo tem de ser renovado em cada operação».

Ora, em máquinas como a dos autos, os pontos adquiridos podem ser usados em jogos sucessivos e o próprio funcionamento do jogo induz à cumulação de pontos e a essa utilização em jogos sucessivos, com o risco de perda, na jogada ulterior, dos créditos sucessivamente acumulados, sendo o princípio idêntico àquele que rege o jogo da roleta dos casinos, sem prejuízo das diferenças, designadamente monetárias, entre ambos.

Todavia, a qualificação do jogo como sendo de fortuna e azar não está dependente das quantias monetárias envolvidas que poderão, quando muito, interessar em sede diversa, ou seja, na fase da determinação da medida da pena, se for esse o caso.

21º O Acórdão recorrido sublinhou, ainda, como se viu (cfr. supra nº 11 das presentes contra-alegações) (destaques do signatário):

Considerou a decisão recorrida que estamos perante uma máquina de jogo de fortuna e azar, tal como este é definido nos artigos 1º e 4º, nº 1, g) deste Decreto-Lei nº 422/89.

Como já vimos, jogos de fortuna ou azar são aqueles cujo resultado é contingente por assentar exclusiva ou fundamentalmente na sorte, nos termos do art. 1º do Decreto-Lei nº 422/89 mas, de entre esses, apenas aqueles que estão tipificados no seu art. 4º. Sendo, pois para o efeito, considerados jogos de fortuna ou azar aqueles cuja exploração é autorizada nos casinos.

Para o que aqui nos interessa que é o jogo em máquinas, atenta a tipificação do artigo 4º, nº 1, nomeadamente as suas alíneas f) e g), do citado Dec. Lei nº 422/89, são considerados como tipos de jogos de fortuna ou azar os jogos em máquinas que:

i) Pagam diretamente prémios em fichas ou moedas;

ii) Não pagando diretamente prémios em fichas ou moedas, desenvolvam temas próprios dos jogos de fortuna ou azar; ou

iii) Não pagando diretamente prémios em fichas ou moedas apresentam como resultado pontuações dependentes exclusiva ou fundamentalmente da sorte.

Trata-se de hipóteses autónomas e não cumulativas, razão porque, ao contrário do propugnado pelo recorrente, não é requisito essencial à qualificação da máquina como sendo de jogo de fortuna e azar que esta envolva o pagamento direto em fichas ou moedas, por ser esse o pagamento efetuado em «jogos de casino». Essa é a hipótese prevista na citada alínea f) do art. 4º, Mas, consoante já vimos, na decisão recorrida atendeu-se antes à previsão constante da alínea g).

Consequentemente, cremos ser seguro afirmar que a máquina em causa, com as características e funcionalidades descritas nos pontos 4 a 8 da matéria provada, desenvolvia jogo de fortuna ou azar, no tema roleta, e apresentava como resultado pontuações dependentes exclusivamente ou fundamentalmente da sorte, sendo que os créditos podiam ser reclamados pelo jogador, sob a forma de prémio pecuniário ao explorador do estabelecimento comercial (café) que, obviamente, não integra zona de jogo autorizado.

Consoante referido, em recente acórdão deste Tribunal da Relação (Ac. RP de 7/5/2014, Proc. nº 970/10.0GALSD.P1, rel. Pedro Vaz Pato, in dgsi.pt), em hipótese idêntica à dos presentes autos «A indução de comportamentos compulsivos com reflexos sociais danosos representa um malefício que a criminalização da exploração ilícita do jogo pretende combater e, porque tal risco se verifica no uso da máquina em questão, justifica-se a criminalização da sua exploração ilícita».

Não pode, pois, dizer-se, como alega o recorrente, que o jogo em questão não cria um risco de «viciação». Ou que o impulso para um novo jogo é renovado apenas de cada vez que se volta a introduzir a moeda. Não, esse impulso é fortemente estimulado pela possibilidade de acumulação de pontos que depende da realização de novos jogos. A atração dos prémios não está pré-definida e circunscrita, vai crescendo de forma eventualmente ilimitada. E sempre com o risco de perda de uma só vez de todos os pontos sucessivamente acumulados.

A máquina em apreço não é, pois, equiparável à que é objeto do acórdão de fixação de jurisprudência nº 4/2010.

22º Terá, pois, de concluir-se que a ratio decidendi do referido Acórdão, do Tribunal da Relação do Porto, não corresponde de todo, bem pelo contrário, à interpretação avançada pelo recorrente e constante do seu requerimento de recurso, relativamente aos arts. 4º, 108º e 115º do Decreto-Lei 422/89, «no sentido de se poder entender um qualquer jogo desenvolvido por máquina eletrónica, cujo resultado depende exclusiva ou fundamentalmente da sorte, mas cujos limites máximos de «prémios» [a] atribuir estejam já previamente definidos e delimitados e sejam do conhecimento dos utilizadores, consubstancia um jogo de fortuna ou azar» (cfr. supra nº 15 das presentes contra-alegações).

Não deverá, pois, este Tribunal Constitucional conhecer da primeira questão de constitucionalidade invocada pelo arguido, por a mesma não integrar a ratio decidendi do Acórdão recorrido, do Tribunal da Relação do Porto.

23º Quanto à segunda questão de constitucionalidade agora invocada pelo arguido, relativa ao art. 43º do Código Penal, «porquanto efetivada no sentido de se poder entender a suspensão da execução, prevista no art. 50º do C. Penal, como qualquer uma das penas de substituição que aquele art. 43º impõe sejam aplicadas quando se decide pela condenação em medida inferior a 1 (um) ano de prisão» (cfr. supra nº 16 das presentes contra-alegações), também se crê que este Tribunal Constitucional a não deverá conhecer.

Desde logo, por a mesma questão não ter sido, sequer, equacionada como uma questão de constitucionalidade pelo recorrente, no seu recurso para o Tribunal da Relação do Porto.

Compulsando, com efeito, as conclusões da motivação do mesmo recurso (cfr. fls. 263-266, 329-331 dos autos), apenas se encontra a seguinte referência de constitucionalidade:

X. Sendo que, ao decidir como o fez, o Digníssimo Tribunal «a quo» violou os mais elementares princípios constitucionais consagrados, ao decidir, de forma claramente arbitrária, e sem quaisquer considerandos legais, pela aplicação não ora Recorrente de uma pena claramente restritiva do seu direito à sua liberdade, constitucionalmente consagrado, quando a própria lei lhe impunha a substituição de tal pena.

Dificilmente, porém, se poderá entender tal referência como a formulação de uma questão normativa de constitucionalidade, pelo menos na aceção reiteradamente exigida por este Tribunal Constitucional.

24º O que explica, aliás, que o tribunal recorrido tenha entendido esta questão, fundamentalmente, como de aplicação de direito infraconstitucional.

Como se referiu já (cfr. supra nº 13 das presentes contra-alegações), o Tribunal da Relação do Porto salientou, a este propósito:

Em conformidade, consagrou o no art. 43º nº 1, do mesmo diploma legal, que «a pena de prisão aplicada em medida não superior a um ano é substituída por pena de multa ou por outra pena não privativa de liberdade, exceto se a execução for exigida pela necessidade de prevenir o cometimento de futuros crimes».

E, nesta matéria, a jurisprudência dos nossos tribunais superiores tem afirmado, reiterada e pacificamente, que o requisito essencial da aplicação de pena de substituição deve assentar num juízo de prognose positivo, sobre a suficiência da censura expressa na condenação que há de ter subjacente matéria factual capaz de inculcar e fundamentar a conclusão da forte probabilidade de existência de uma alteração do percurso de vida do condenado e da sua intenção de se afastar da delinquência.

Ora, in casu, considerou o tribunal a quo que a pena pecuniária não lograria alcançar tal desiderato, não se mostrando adequada e suficiente a acautelar a reiteração criminosa, porquanto o arguido já anteriormente beneficiara da aplicação desse tipo de pena e voltara a delinquir.

Assim, o que se afirma é a insuficiência e inadequação da mera pena pecuniária (multa) e não a necessidade de execução da pena privativa da liberdade que foi afastada precisamente para conceder uma oportunidade ao arguido, nunca antes sujeito a sanção de tal gravidade, em perfeita consonância com a estatuição legal do citado art. 43º nº 1.

Termos em que, inexistindo qualquer contradição de fundamentação e mostrando-se perfeitamente adequada às exigências cautelares impostas pelas finalidades da pena, se mantém a pena de substituição escolhida (suspensão da pena de prisão).

25º E, mais adiante, o Tribunal da Relação do Porto reforçou esta ideia, salientando, se necessário fosse (cfr. supra nº 14 das presentes contra-alegações):

Ora, sendo mediana a ilicitude e elevada a culpa (dolo direto), não beneficiando o arguido de atenuantes de relevo e tendo já averbada condenação anterior, precisamente pelo mesmo tipo de crime, datada de 17/5/2011, não será a sua situação profissional (comerciante) e o facto de ter um filho menor que alguma vez poderiam fazer baixar a fasquia da prevenção. E, a circunstância de ter decorrido pouco mais de um ano desde a condenação inicial não tem relevo atenuante. Antes pelo contrário, é essa proximidade que demonstra a insensibilidade à observância normativa. Depois, o facto de continuar a explorar o estabelecimento de café, a que agora se junta a gerência de um estabelecimento de Pão Quente, potenciam a repetição da conduta delituosa caso o arguido não interiorize devidamente o desvalor que lhe está inerente e arrepie caminho no sentido de salvaguardar os comandos da ordem jurídica.

Consequentemente, não se vislumbra que a medida das penas (prisão e multa) se mostrem desajustadas às circunstâncias do caso.

E, o quantum diário da pena de multa se peca é por defeito já que fixado praticamente no mínimo legal - 7,00 numa moldura de 5,00 a 500,00 relativamente a comerciante que alargou recentemente a sua atividade assumindo a gerência de um segundo estabelecimento cuja renda se cifra em 1.000, o que demonstra capacidade económica razoável e possibilidade de realização de lucros elevados.

Em consequência, também aqui não merece censura a decisão recorrida, carecendo de fundamento a pretensão do arguido.

Só pode, pois, concluir-se, também quanto a esta segunda questão de constitucionalidade, que este Tribunal Constitucional não deverá dela conhecer, uma vez que o ora recorrente não submeteu tal questão, enquanto questão de constitucionalidade, à apreciação do tribunal recorrido.

Nem, aliás, o poderia fazer!

O arguido pretende, no fundo, contestar a subsunção jurídica efetuada pelas instâncias quanto à medida concreta da pena que lhe foi aplicada, decorrente da matéria de facto dada como provada, o que naturalmente está excluído da apreciação a fazer por este Tribunal Constitucional, que se ocupa apenas da avaliação da constitucionalidade de normas jurídicas.

26º Assim, em face de todo o alegado nestas contra-alegações, julga-se que este Tribunal Constitucional deverá agora:

a) não conhecer do recurso de constitucionalidade oportunamente interposto pelo arguido A.;

b) confirmar, nessa medida, o Acórdão recorrido, de 2 de julho de 2014, do Tribunal da Relação do Porto, que confirmou a condenação do arguido, proferida em 1ª instância, na pena de 7 meses de prisão, suspensa na sua execução por 1 ano, desde o trânsito em julgado da decisão e, cumulativamente, na pena de multa de 100 dias à taxa diária de 7,00, no montante total de 700,00.»

 

     O Recorrente foi notificado para se pronunciar quanto ao alegado pelo Ministério Público nas contra-alegações, na parte em se defende o não conhecimento da segunda questão de constitucionalidade colocada no recurso, tendo sustentado o conhecimento da mesma.

 

*

Fundamentação

No sistema português de fiscalização de constitucionali­dade, a com­petência atribuída ao Tribunal Constitucional cinge‑se ao controlo da inconstitu­ciona­lidade normativa, ou seja, das questões de desconformidade constitucional imputada a normas jurídicas ou a inter­pretações normativas, e já não das questões de inconstitucionalidade imputadas diretamente a deci­sões judi­ciais, em si mesmas consideradas.

Nos recursos interpostos ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC como ocorre no presente processo , a sua admis­sibilidade depende ainda da verificação cumulativa dos requisitos de a questão de inconstitucionalidade haver sido susci­tada «durante o pro­cesso», «de modo processualmente adequado pe­rante o tribunal que pro­feriu a deci­são recor­rida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (n.º 2, do artigo 72.º, da LTC), e de a decisão recorrida ter feito aplica­ção, como sua ratio decidendi, das dimensões normativas arguidas de inconstitucionais pelo recorrente.

Consistindo a competência do Tribunal Constitucional, no domínio da fiscalização concreta, na faculdade de revisão, em via de recurso, de decisões judiciais, compreende-se que a questão de constitucionalidade deva, em princípio, ter sido colocada ao tribunal a quo, além de que permitir o acesso a este Tribunal com base numa invocação da inconstitucionalidade unicamente após a prolação da decisão recorrida, abriria o indesejável caminho à sua utilização como expediente dilatório. Daí que só tenha legitimidade para pedir ao Tribunal Constitucional a fiscalização de constitucionalidade de uma norma quem tenha suscitada previamente essa questão ao tribunal recorrido, em termos de o vincular à sua apreciação, face às normas procedimentais que regem o processo em que se enxerta o recurso constitucional.

Por outro lado, considerando o caráter ou função instrumental dos recursos de fiscali­za­ção concreta de constitucionalidade face ao processo-base, exige-se, para que o recurso tenha efeito útil, que haja ocorrido efetiva aplicação pela decisão recorrida da norma ou interpretação normativa cuja constitucio­nalidade é sindicada. É necessário, pois, que esse critério normativo tenha constituído ratio decidendi do acórdão recorrido, pois, só assim, um eventual juízo de inconstitucionalidade poderá determinar uma reformulação dessa deci­são.

No caso dos autos, o Recorrente fez constar do requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional que pretende que sejam apreciadas duas questões de constitucionalidade, que enunciou da seguinte forma:

- a «inconstitucionalidade das normas constantes dos arts. 4º, 108º e 115º do D.L. n.º 422/89, de 02 de dezembro, quando interpretadas no sentido de se poder entender um qualquer jogo desenvolvido por máquina eletrónica, cujo resultado dependa exclusiva ou fundamentalmente da sorte, com os respetivos prémios já previamente definidos e delimitados e do conhecimento de todos os seus utilizadores, consubstanciam, ainda assim, um jogo de fortuna ou azar»; e

- a «inconstitucionalidade da norma constante do art. 43º do C.Penal, quando interpretada no sentido de que se poder entender a suspensão da execução, prevista no art. 50º do mesmo diploma legal, como qualquer uma das penas de substituição que aquele art. 43º impõe sejam aplicadas quando se decide pela condenação em medida não superior a 1 (um) ano de prisão».

Importa, no que respeita a estas duas questões, e tendo em atenção o alegado pelo Ministério Público, verificar se estão preenchidos os aludidos requisitos de admissibilidade do recurso.

Relativamente à primeira questão, há que analisar se a interpretação normativa questionada pelo Recorrente foi efetivamente aplicada pela decisão recorrida como sua ratio decidendi.

Conforme se referiu, o Recorrente sustentou ser inconstitucional a interpretação das normas constantes dos artigos 4.º, 108.º e 115.º do Decreto-Lei n.º 422/89, de 2 de dezembro, no sentido de se considerar um jogo de fortuna e azar um qualquer jogo desenvolvido por máquina eletrónica, cujo resultado dependa exclusiva ou fundamentalmente da sorte, com os respetivos prémios já previamente definidos e delimitados e do conhecimento de todos os seus utilizadores, sustentando que tal interpretação «é claramente inconstitucional por violação dos princípios da liberdade individual e da proporcionalidade, designadamente, da norma constante do artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa, e, bem assim, por clara violação do supra referido princípio da legalidade, na vertente de nullum crimen sine lege certa, logo, por violação do disposto no artigo 29.º da Constituição da República Portuguesa».

De acordo com o Recorrente, uma máquina com as características descritas, que corresponderiam à máquina em causa nos autos, não integraria a previsão dos jogos de fortuna e azar, situação em tudo idêntica à que determinou a jurisprudência fixada no Acórdão n.º 4/2010 do Supremo Tribunal de Justiça, com exceção do impulso que naquela é eletrónico e nesta era mecânico, sendo este o fundamento em que fez assentar a inconstitucionalidade por si suscitada.

No entanto, resulta claro da fundamentação do acórdão recorrido que o Tribunal da Relação do Porto não entendeu que a máquina em causa tivesse as aludidas características.

Com efeito, depois de citar a orientação jurisprudencial do Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 4/2010, de 8 de março de 2010, segundo a qual «constitui modalidade afim, e não jogo de fortuna ou azar, nos termos dos artigos 159.º, n.º 1, 161.º, 162.º e 163.º do Decreto-Lei n.º 422/89, de 2 de dezembro, na redação do Decreto-Lei n.º 10/95, de 19 de janeiro, o jogo desenvolvido em máquina automática na qual o jogador introduz uma moeda e, rodando um manípulo, faz sair de forma aleatória uma cápsula contendo uma senha que dá direito a um prémio pecuniário no caso de o número nela inscrito coincidir com algum dos números constantes de um cartaz exposto ao público», o Tribunal a quo esclareceu que as máquinas objeto de apreciação no referido Acórdão de Fixação de Jurisprudência «correspondem à versão atualizada e modernizada das vulgares rifas que se vendiam (e vendem) em quermesses e festas populares por todo o país», acrescentando ainda que se trata «de máquinas nas quais o jogador introduz moeda no manípulo fazendo sair, de forma aleatória, cápsula contendo senhas, ficando o jogador na expectativa de receber um prémio em dinheiro, ou em coisas de valor económico, caso as senhas contidas no interior da cápsula uma, ou mais, tenha escrito um número que seja coincidente com outro inscrito no cartaz, não pagando tais máquinas, diretamente, fichas ou moedas».

 Considerou, no entanto, a decisão recorrida que «no caso em apreço nestes autos a máquina apresenta como resultado determinadas pontuações que dependem exclusivamente da sorte e que assumem o caráter de créditos que o jogador tanto pode utilizar para continuar a jogar como para reclamar o prémio respetivo», sustentando, assim, que se mostra «preenchida a previsão da última parte da alínea g) do nº 1 do citado artigo 4º, que define os tipos de jogos de fortuna ou azar, e não existe qualquer confusão com o tipo de máquinas em causa no AFJ nº 4/2010, que se reporta a prémios isolados proporcionados pelos sorteios, rifas e tômbolas, ou seja em que o jogo se esgota numa única ação sem possibilidade de continuação pois que, se o jogador quiser voltar a jogar terá que iniciar nova ação que, por sua vez, se esgota nessa jogada, e assim o impulso para o jogo tem de ser renovado em cada operação».

E acrescenta ainda o acórdão recorrido que «em máquinas como a dos autos, os pontos adquiridos podem ser usados em jogos sucessivos e o próprio funcionamento do jogo induz à cumulação de pontos e a essa utilização em jogos sucessivos, com o risco de perda, na jogada ulterior, dos créditos sucessivamente acumulados, sendo o princípio idêntico àquele que rege o jogo da roleta dos casinos, sem prejuízo das diferenças, designadamente monetárias, entre ambos».

Daí que a decisão recorrida tenha concluído «ser seguro afirmar que a máquina em causa, com as características e funcionalidades descritas nos pontos 4 a 8 da matéria provada, desenvolvia jogo de fortuna ou azar, no tema roleta, e apresentava como resultado pontuações dependentes exclusivamente ou fundamentalmente da sorte, sendo que os créditos podiam ser reclamados pelo jogador, sob a forma de prémio pecuniário ao explorador do estabelecimento comercial (café) que, obviamente, não integra zona de jogo autorizado» acrescentando ainda, citando outro acórdão do Tribunal da Relação do Porto (o Acórdão de 7/5/2014, tirado no Proc. nº 970/10.0GALSD.P1, relatado por Pedro Vaz Pato, in dgsi.pt), que «[n]ão pode, pois, dizer-se, como alega o recorrente, que o jogo em questão não cria um risco de «viciação». Ou que o impulso para um novo jogo é renovado apenas de cada vez que se volta a introduzir a moeda. Não, esse impulso é fortemente estimulado pela possibilidade de acumulação de pontos que depende da realização de novos jogos. A atração dos prémios não está pré-definida e circunscrita, vai crescendo de forma eventualmente ilimitada. E sempre com o risco de perda de uma só vez de todos os pontos sucessivamente acumulados. A máquina em apreço não é, pois, equiparável à que é objeto do acórdão de fixação de jurisprudência nº 4/2010.»

Resulta, assim, claro que a decisão recorrida afastou expressamente a hipótese de a máquina em causa nos autos ter as características enunciadas na questão de constitucionalidade suscitada pelo ora Recorrente, pelo que o conteúdo da interpretação normativa impugnada não corresponde àquele que foi sustentado na decisão recorrida.

É certo que, no requerimento de interposição de recurso, o Recorrente coloca em questão este entendimento seguido no acórdão recorrido, sustentando que o mesmo não tem fundamento fáctico. Contudo, não compete ao Tribunal Constitucional sindicar as concretas operações de apreciação dos factos e de subsunção dos mesmos a determinadas normas jurídicas, no plano do direito infraconstitucional. Compete-lhe apenas apreciar se determinada norma jurídica ou determinada interpretação normativa efetivamente aplicada pela decisão recorrida é desconforme com a Constituição.

Assim, uma vez que a questão de constitucionalidade suscitada pelo Recorrente não traduz o entendimento que resulta da decisão recorrida, é forçoso concluir que a interpretação normativa indicada como objeto do recurso não foi efetivamente aplicada por tal decisão.

Ora, dado o caráter ou função instrumental dos recursos de fiscalização concreta, exige-se, para que o recurso tenha efeito útil, que haja ocorrido efetiva aplicação pela decisão recorrida, da norma ou interpretação normativa cuja constitucionalidade é sindicada. É necessário, pois, que a interpretação acusada de inconstitucionalidade tenha constituído ratio decidendi da decisão recorrida, pois, só assim um eventual juízo de inconstitucionalidade poderá determinar uma reformulação dessa decisão.

Pelo exposto, verificada a falta de aplicação efetiva, pelo tribunal a quo, das normas contidas nos nºs 4.º, 108.º e 115.º do Decreto-Lei n.º nº 422/89, de 02 de dezembro, interpretadas com «o sentido de que um qualquer jogo desenvolvido por máquina eletrónica, cujo resultado dependa exclusiva ou fundamentalmente da sorte, mas cujos limites máximos de prémios a atribuir estejam já previamente definidos e delimitados e sejam do conhecimento dos utilizadores, consubstancia um qualquer jogo de fortuna ou azar», importa concluir que não está preenchido este requisito essencial do recurso de constitucionalidade sob apreciação, não podendo o Tribunal Constitucional conhecer, nesta parte, do seu objeto.

O Recorrente pretende ainda que seja apreciada a questão da «inconstitucionalidade da norma constante do art. 43.º do C. Penal, quando interpretada no sentido de que se poder entender a suspensão da execução, prevista no art. 50.º do mesmo diploma legal, como qualquer uma das penas de substituição que aquele art. 43.º impõe sejam aplicadas quando se decide pela condenação em medida não superior a 1 (um) ano de prisão», acrescentando que se deverá decidir «pela inconstitucionalidade do art. 43.º quando, no caso de aplicação de pena de prisão em medida inferior a 1 (um) ano, se interpretar no sentido de se decidir, ao invés do ali legalmente "imposto", não pela substituição da tal pena de prisão por pena de multa ou outra não privativa da liberdade, mas, pela suspensão da dita pena de prisão na sua execução».

Alegou o Ministério Público que tal questão não foi adequadamente suscitada perante o tribunal recorrido como uma questão normativa de constitucionalidade e que o Recorrente apenas pretende com a mesma contestar a subsunção jurídica efetuada pelas instâncias quanto à medida concreta da pena que lhe foi aplicada, decorrente da matéria de facto dada como provada, o que naturalmente está excluído da apreciação a fazer por este Tribunal Constitucional.

Cumpre apreciar.

No que respeita ao modo como deve ser colocada a questão de constitucionalidade, tem sido entendimento reiterado do Tribunal Constitucional que a suscitação processualmente adequada de uma questão de constitucionalidade implica, desde logo, que o recorrente tenha cumprido o ónus de a colocar ao tribunal recorrido, enunciando-a de forma expressa, clara e percetível, em ato processual e segundo os requisitos de forma que criam para o tribunal a quo um dever de pronúncia sobre a matéria a que tal questão se reporta.

Acresce que, no caso de pretender questionar apenas certa interpretação de uma dada norma, deverá o recorrente especificar claramente qual o sentido ou dimensão normativa do preceito ou arco normativo que tem por violador da Constituição, enunciando cabalmente e com precisão e rigor todos os pressupostos essenciais da dimensão normativa tida por inconstitucional.

Da leitura das alegações do recurso interposto pelo ora Recorrente para o Tribunal da Relação do Porto, peça processual em que deveria ser suscitada a questão de constitucionalidade, constata-se que aí apenas se refere, a este respeito, na motivação, o seguinte:

«[] no caso concreto, e por não se afigurar a execução dessa pena de prisão como exigida pela necessidade de prevenir o cometimento de futuros crimes, pois que, para além de nem sequer referir um tal facto, uma tal necessidade, é o próprio Digníssimo Tribunal a quo quem decide pela não efetividade dessa sua execução, sempre a pena de prisão aplicada ao ora Recorrente deverá, nos termos do preceituado no artigo 43.º do Código Penal, ser substituída por pena de multa ou por outra pena não privativa da liberdade aplicável.

Não o tendo feito, o Digníssimo Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 40.º do nosso Código Penal, bem como, no artigo 18.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa.»

Por sua vez, nas conclusões, apenas se refere que:

«W. No caso presente, é forçoso concluir-se que a opção pela aplicação ao aqui Recorrente de uma pena de prisão, ainda que suspensa na sua execução, não se mostra de modo algum correta e justa, pecando por manifestamente desadequada, não se enquadrando nos princípios legais supra referidos, os artigos 40.º e 43.º do Código Penal, até porque é o próprio tribunal que afasta a execução dessa prisão como exigida pela necessidade de prevenir o cometimento de futuros crimes

X. Sendo que, ao decidir como fez, o Digníssimo Tribunal a quo violou os mais elementares princípios constitucionais consagrados, ao decidir, de forma claramente arbitrária, e sem quaisquer considerandos legais, pela aplicação ao ora Recorrente de uma pena claramente restritiva do seu direito à liberdade, constitucionalmente consagrado, quando a própria lei lhe impunha a substituição de tal pena».

Ora, se atentarmos no teor destas alegações, constata-se que aí não é suscitada, de forma expressa, clara e percetível, qualquer questão de constitucionalidade que o Recorrente pretenda ver apreciada, uma vez que não se identifica de forma precisa qual a norma ou interpretação normativa reputada de inconstitucional, nem as razões pelas quais a mesma é considerada violadora da Constituição, resultando, aliás, que o Recorrente pretendeu imputar a inconstitucionalidade à própria decisão e não à aplicação de um critério jurídico, genérica e abstratamente concebido, que seria passível de controlo jurídico-constitucional.

Ou seja, o que o Recorrente fez foi invocar em termos genéricos normas e princípios constitucionais, que entendeu serem aplicáveis na resolução do litígio, sem que, no entanto, tenha questionado a conformidade constitucional de qualquer norma ou de determinada interpretação normativa de um preceito ou arco normativo, por violador da Constituição.

Sintomático desta omissão é o facto de na decisão recorrida não se fazer referência a qualquer questão de constitucionalidade. E tal deve-se, justamente, à não suscitação adequada de uma questão de inconstitucionalidade pelo Recorrente e não a qualquer omissão de pronúncia.

Ora, tal forma de proceder é manifestamente insuficiente para que se possa considerar cumprido o ónus, que recai sobre o Recorrente, de, caso pretenda vir a recorrer para o Tribunal Constitucional, suscitar previamente, perante o tribunal recorrido, de modo processualmente adequado, uma questão de constitucionalidade normativa em termos de este a dever apreciar, pelo que, também no que respeita a esta questão, não se poderá tomar conhecimento do objeto do recurso.

Não estando preenchidos os aludidos requisitos de admissibilidade do recurso de constitucionalidade previsto no artigo 70.º, n.º 1, b), da LTC, não pode o Tribunal Constitucional conhecer do seu objeto.

 

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Decisão

Nestes termos, decide-se não tomar conhecimento do recurso interposto para o Tribunal Constitucional pelo arguido A., do acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proferido nestes autos em de 2 de julho de 2014.

 

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Custas pelo Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 12 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 4 de outubro (artigo 6.º, n.º 1, do mesmo diploma).

 

Lisboa, 4 de março de 2015 - João Cura Mariano - Ana Guerra Martins - Pedro Machete - Fernando Vaz Ventura - Joaquim de Sousa Ribeiro